Correio da Cidadania

EUA deverão permanecer como o maior aliado de novo governo egípcio

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Independentemente de quem assuma o poder, mesmo de maneira provisória, não poderá o Egito abrir mão do auxílio militar anual de quase um bilhão e meio de dólares provido há muito tempo pelos Estados Unidos.

 

A significativa quantia auxilia a temperar o ânimo das forças armadas pelo poder no país, a reconhecer seu mérito na sociedade, a modernizá-las em termos de equipagem e, ao mesmo tempo, a preservá-las do desgastante cotidiano administrativo.

 

Em suma, elas se mantêm importantes no palco, mas sempre situadas de forma recuada aos olhos da opinião pública no desenrolar do dia-a-dia das cenas egípcias, o que possibilita a elas ser o deus ex-machina da vida política, ou seja, o interventor com o condão de solucionar eventuais problemas e, por conseguinte, restabelecer o almejado equilíbrio.

 

Deste modo, o novo governo, ainda que inclinado à abertura política, terá como principal aliado interno as forças armadas, e externo, Washington. Eis, de pronto, as duas peças limitantes ao estabelecimento no curto prazo de um regime de fato democrático, uma vez que ambos realmente desejam do sistema político do país sua imperturbabilidade, não maior participação popular.

 

À medida que o governo de Hosni Mubarak foi incapaz de manter a ordem, ele mesmo estabeleceu seu destino: a retirada definitiva do poder, após trinta anos de exercício praticamente – a mais longa administração entre os três dirigentes do país desde 1956.

 

A retirada de apoio das forças armadas e da Casa Branca selou-lhe a sorte. De mais a mais, os Estados Unidos haviam recomendado ao Alto Comando Militar do Egito que não reprimisse os protestos com violência, mas negociasse um período de transição, o que logo ocorreu.

 

A saída de Mubarak, embora tenha acalmado a indignação dos manifestantes egípcios, repercute de maneira indubitável na estrutura política autoritária e anacrônica da região. A preocupação maior do Ocidente refere-se aos possíveis desdobramentos, caso haja mais mudanças, na economia de toda aquela área, grande fornecedora de petróleo e de gás ao eixo norte-atlântico.

 

Com a recuperação econômica mundial ainda em andamento, receia-se sobremaneira outro impacto nos preços daqueles produtos por causa da instabilidade política inicial e, posteriormente, por conta de uma nova orientação às futuras administrações – maior presença social.

 

Teme-se também que novos governos não sejam tão afinados aos desígnios ocidentais, em especial aos dos norte-americanos. Além do mais, Washington avalia qual o futuro papel dos grupos fundamentalistas em um sistema político mais aberto. Integrar-se-iam ou não à vida partidária? Renunciariam eles ou não a determinados postulados, considerados por vários analistas ocidentais como incompatíveis à democracia formal?

 

No Egito, o mais tradicional é a Irmandade Muçulmana, observada por setores conservadores na faixa euro-americana como favorável ao terrorismo, ao firmar o propósito de constituir um novo califado na África do Norte e no Oriente Médio por meio da força, se necessário.

 

Fundado no final dos anos 20, em pleno período de influência britânica do país, ela propunha-se a renovar a atuação muçulmana, apesar de, na década seguinte, alinhar-se à monarquia na oposição a militantes esquerdistas ou nacionalistas.

 

Em 1948, depois do assassínio do primeiro-ministro do país pelo grupo, a divergência estabeleceu-se de modo resoluto. A aproximação havia sido desfeita em função da desconfiança de que o grupo preparava um golpe de Estado.

 

Na década seguinte, o convívio respeitoso com o Movimento dos Oficiais Livres, liderado, entre outros, pelo Coronel Gamal Abdel Nasser, durou pouco tempo. Em mais de uma ocasião, houve a tentativa de assassiná-lo à frente do poder, o que positivamente despertou a atenção dos Estados Unidos, apreensivo com o pan-arabismo, de corte secular e de aproximação com o socialismo. Anteriormente, a Arábia Saudita ajudava a organização financeiramente, em face do anticomunismo comum.

 

Com o auxílio, ela pôde espalhar-se pela região médio-oriental e adjacências – chegaria ao Paquistão –, mas sem paradoxalmente instalar-se em solo saudita. O sucessor de Nasser, Anwar El Sadat, havia militado nela nos anos 40 e valeu-se dela para isolar forças oposicionistas, normalmente progressistas, mas terminaria sendo morto em 1981 por um de seus ramos, insatisfeito com a proximidade com o governo israelense.

 

O Tratado de Paz de 1979 entre Egito e Israel, patrocinado pelos Estados Unidos, desagradou segmentos mais radicais do país. Por meio dele, o governo egípcio recebeu de volta a península do Sinai, capturada na Guerra dos Seis Dias, de 1967, com o compromisso de não militarizar aquela zona fronteiriça, e passou a receber auxílio financeiro norte-americano para suas forças armadas.

 

Em troca, o Cairo reconheceu diplomaticamente Israel e permitiu a navegação no canal de Suez. Assim, os dois países selaram uma aliança estratégica na região, pondo fim à tensão militar existente desde 1948.

 

Hosni Mubarak, ao suceder Sadat, governaria o país sob estado de emergência, tendo por justificativa a necessidade de conter a atuação da Irmandade Muçulmana.

 

Durante sua longa gestão, Mubarak sempre apresentou o jogo político à sociedade da seguinte forma: estabilidade representada por ele ou fundamentalismo pela Irmandade Muçulmana. Eis um dos motivos por que ele permaneceu tanto tempo à testa do poder, ao explorar bem a dicotomia, principalmente depois do atentado terrorista de setembro de 2001.

 

Na década passada, o grupo teria moderado à primeira vista seu posicionamento e passou a administrar uma rede social, ao proporcionar atendimento médico e restaurantes populares, por exemplo. Assim, adquiriu maior confiança aos olhos da população.

 

Nas eleições parlamentares de 2005, obtiveram 1/5 dos representantes. Dois anos depois, a organização reiterou a idéia de um governo supervisionado por especialistas islâmicos, não necessariamente clérigos.

 

Apesar da presença constante entre todos os segmentos da população, a Irmandade não liderou as manifestações de descontentamento ocorridas há poucas semanas no país. Elas derivaram da ausência de melhora de vida da população no curto prazo, especialmente entre a juventude.

 

Por conseguinte, as queixas da população não têm sido formuladas, como invocava Mubarak, por grupos ideológicos bem estruturados, sejam de extração secular (vinculados à esquerda) ou religiosa, conectados à Irmandade Muçulmana.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

 

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