Correio da Cidadania

Fazendo de conta de que não é conosco

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Há dois meses, exatamente em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso conhecido como "Guerrilha do Araguaia". A imprensa, o rádio e a televisão, como esperado, limitaram-se a noticiar o fato segundo o estilo de um famoso ministro da justiça do regime militar: "Sem comentários".

 

Até aí, conforme o ditado, "tudo como dantes no velho quartel de Abrantes"; o qual, pelo visto, localiza-se em pleno centro de Brasília (DF).

 

O que espanta, porém, é que o novo governo federal, presidido por uma vítima da repressão criminosa comandada pela gente fardada no poder, resolveu proceder como se nada tivesse a ver com isso. "Fomos mesmo condenados? Bem, ainda não tivemos tempo de nos ocupar do caso".

 

Vale a pena, pois, indicar a seguir os principais pontos conclusivos dessa sentença condenatória, que mostra o caráter invariavelmente dúplice das classes dirigentes brasileiras: civilizadas por fora e selvagens por dentro. Os trechos em itálico são transcrições literais do teor do acórdão.

 

1) "As disposições da Lei de Anistia brasileira [tal como pervertidamente interpretada pelo Supremo Tribunal Federal], as quais impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos e carecem de efeitos jurídicos". Em conseqüência, decidiu a Corte que o Estado brasileiro tem o dever de submeter os agentes públicos que praticaram tais violações às sanções penais previstas em lei, mediante processos a serem movidos perante a justiça ordinária e não no foro militar. A Corte fez questão de precisar que, malgrado o tempo decorrido, os réus não podem invocar a prescrição penal a seu favor.

 

2) "O Estado brasileiro deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeira".

 

3) O acórdão da Corte em seu inteiro teor, salvo as notas de rodapé, deve ser publicado no Brasil, no Diário Oficial.

 

4) Dentro de um ano, a partir da notificação da decisão condenatória, o Estado brasileiro deve realizar um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional, a respeito dos fatos ocorridos durante a chamada "Guerrilha do Araguaia", em presença de altas autoridades e das vítimas.

 

5) O Estado brasileiro deve implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório de direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas.

 

6) O Estado brasileiro deve tipificar em lei o crime de desaparecimento forçado de pessoas.

 

7) "O Estado brasileiro deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como de informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma".

 

8) O Estado brasileiro deve pagar às vítimas da "Guerrilha do Araguaia", ou a seus familiares, uma indenização por dano material e moral.

 

9) O Estado brasileiro deve realizar uma convocatória em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos da "Guerrilha do Araguaia", a fim de que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da decisão condenatória, os familiares das vítimas apresentem elementos para identificação das pessoas desaparecidas.

 

Em conclusão, declarou a Corte que ela irá supervisionar o cumprimento integral de sua decisão, e determinou que, dentro de um ano, a partir da notificação do acórdão, o Estado Brasileiro apresente à Corte um relatório sobre as medidas adotadas para a sua execução.

 

Se o Estado Brasileiro não apresentar tempestivamente esse relatório, ou apresentá-lo sem justificativa aceitável quanto ao não-cumprimento de qualquer parte da condenação que lhe foi infligida, o nosso país voltará ao banco dos réus.

 

Mas não se alvoroce, caro leitor. Os nossos oligarcas têm uma longa experiência para enfrentar situações como essa. No Brasil, o país legal é sempre muito diferente do país real. Durante quase meio século, mantivemos a ilegalidade oficial do tráfico negreiro ("para inglês ver") e sua cruel efetividade no dia-a-dia, com o beneplácito do monarca, das autoridades governamentais e dos magistrados. Até hoje, como todos sabem, inclusive os figurões de Brasília, ainda há trabalho escravo em nosso país.

 

Acontece que, como diz o ditado, "a morte liquida todas as contas". Nossos dirigentes vão obviamente esperar que os últimos assassinos, torturadores e estupradores, sobreviventes do regime militar, entreguem suas almas a Deus (ou ao demônio), para informarem a Corte Interamericana de Direitos Humanos de que sua decisão (é bem o caso de dizer) foi religiosamente cumprida.

 

Fábio Konder Comparato é professor titular emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

 

Originalmente publicado na Agência de Notícas Adital – http://www.adital.org/.

 

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Comentários   

0 #4 Cesare Battisti, Comissão da verdade e DRaymundo Araujo Filho 14-02-2011 12:59
DiLLma certamente irá libertar Battisti (não por benesse, mas por obrigação, diga-se de passagem, e já com atraso).

Mas, o jogo que vemos nada mais é do que o produto da pantomima que está à nossa frente, em um jogo de chantagens e chantageados que aceitam as chantagens, no sentido de favorecer mais ainda o Capital Internacional que, a meu ver, está se lixando se Cesare vai ser solto ou não. O que eles querem é saber o quanto podem extrair de vantagens nisso aí.

E as vantagens vêm, em troca de benesses concedidas de forma avassaladora em apenas 1 mês e meio de mandato.

Assim, o não mecher na questão militar brasileira, empregar generais da ditadura nos arquivos da comissão da verdade, além de mais entrega do país e linha dura com Movimentos Sociais, são algumas das pautas que estão neste jogo, as quais, se cumpridas, cessarão, como por enquanto, as críticas a libertação de Cesare Battisti.

Assim funciona a República.
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0 #3 Fazendo de conta.....Waldemar 11-02-2011 12:43
Os artigos do Fábio Komparato dispensam comentários pela profundidade de suas análises. Merece, isto sim, ser amplamente divulgado e debatido por todos, especialmente pela nossa juventude sedente de conhecimentos, de sabedoria.
Waldemar Rossi
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0 #2 Sobre o comentário 1Paulo Metri 11-02-2011 04:14
O autor do comentário 1 está certo ao recriminar o Tribunal por nunca ter condenado os Estados Unidos (estou supondo que eles nunca foram condenados). Agora, este fato tira o mérito da condenação ao Brasil? O que o autor do comentário está querendo dizer? Que a condenação ao Brasil foi somente por interesse estratégico de potências? Que o Tribunal é um instrumento a serviço dos Estados Unidos? Não consigo supor isso. Enfim, o Tribunal, ao falhar com os Estados Unidos, teria que falhar igualmente com o Brasil?
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0 #1 dois pesosRicardo 07-02-2011 13:30
Me desculpe a minha ignorancia, mas esta corte já condenou os EUA pela invasão de Granada, pela invasão do Panamá, pela Prisão de Guantánamo, por apoiar os "Contras" da Nicarágua ou por ter servido de base para torturas em toda "América Del Sul"!!!
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