Correio da Cidadania

Tenotã-mõ e Y Ikatu Xingu

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Recentemente, tive a imensa satisfação de receber, do professor Oswaldo Sevá, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, o livro "Tenotã-mõ – Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu". Além do livro, organizado pelo próprio professor Sevá, ele enviou-me também o folheto da campanha "Y Ikatu Xingu – Salve a água boa do Xingu" (www.yikatuxingu.org.br), do Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org). Não imagino nada melhor para agradecer a gentileza do que dedicar a coluna desta semana à apreciação deste material, e quem sabe colaborar de alguma forma com as campanhas pela preservação do Xingu.

Fora o objetivo comum da preservação do rio e a qualidade gráfica impecável em ambas as publicações, vejo mais diferenças do que semelhanças entre os documentos.

Tenotã-mõ, da editora International Rivers Network (a R$ 75 na loja virtual do Instituto Sócio Ambiental) é uma leitura obrigatória para quem se interessa tanto pelo desenvolvimento quanto pela preservação da Amazônia. Sóbrio, didático e organizado, é robusto como se fosse ele próprio adentrar as trincheiras da batalha pelo rio Xingu. E vai, passando nas aldeias de mão em mão, na bagagem de pesquisadores, subindo rios de canoa, pois o professor Sevá também enviou uma cópia do livro para que seja depositada na coleção da base de pesquisas do Pinkaití. O livrão de 344 páginas está dividido em 11 capítulos assinados por 20 autores, versando sobre aspectos técnicos, históricos, jurídicos e humanísticos dos projetos hidrelétricos; como o assédio da Eletronorte (ou “Eletro-morte” como se brinca por aqui) sobre o povo e as entidades na região de Altamira e as pressões desta companhia sobre os autores do Estudo de Impacto Ambiental; os interesses por trás da necessidade de aumento da oferta de energia elétrica no Pará, que não têm nada a ver com possíveis melhorias na qualidade de vida do povo paraense, mas com a crescente demanda das atividades da mineradora Vale do Rio Doce, que é maior que o Estado (como explica Lúcio Flávio Pinto no capítulo 4); os gases do efeito estufa que seriam emitidos por tais hidrelétricas (capítulo 8, de Philip Fearnside) etc.

Por outro lado, o folheto de 16 páginas da campanha Y Ikatu Xingu tem imagens coloridas do começo ao fim. Algumas de tirar o fôlego como, no começo, a fotografia aérea de baixa altitude do rio Xingu num fim de tarde no período da seca, quando tem praias de areia branca margeadas pelo tapete da mata contínua cortada apenas por igarapés tortuosos que refletem o azul do céu; e, no fim, a modelo Gisele Bündchen, literalmente vestindo a camisa da campanha, o que dispensa descrições detalhadas. Nas páginas centrais há dois mapas que mostram o absurdo que foi o crescimento dos desmatamentos na região do entorno do Parque Indígena entre 1994 e 2005; fotografias didáticas do que “está acontecendo nas cabeceiras do Xingu”, de queimada, fazenda de gado, plantação e colheita da soja, as curvas de nível no entorno da cabeceira dos córregos; e uma coletânea de declarações em letras grandes, acompanhando a fotografias dos respectivos autores: “Estamos dispostos a recuperar as cabeceiras e as matas ciliares conforme manda a lei vigente” e respeitá-la “nas áreas maiores a serem desmatadas em nosso município” (Fernando Gorchem, prefeito de Querência-MT), “Fazendeiros, ONGs, o Estado brasileiro e índios estão iniciando um diálogo” (Mércio Pereira Gomes, “ex”-presidente da FUNAI), “Vamos juntar forças naquilo que nos é comum e colocar o foco certo no que é essencial, que é proteger as nascentes dos rios e recuperar as matas ciliares” (Márcio Santili, do ISA, coordenador da campanha), dentre outras.

Tanto Tenotã-mõ quanto Y Ikatu Xingu podem ser muito úteis para a preservação do Xingu, mas defendo que o tom combativo do primeiro é bem mais adequado à situação. O tal diálogo com fazendeiros, ONGs, e com o Estado brasileiro, que os índios estariam “iniciando” conforme a citação acima do então presidente da FUNAI, por exemplo, não é algo para ser levado a sério, dada a opinião dos índios, pelo menos dos Kayapó, sobre o Sr. Mércio Pereira Gomes, a ineficiência do órgão indigenista sob a sua gestão e a mentalidade geral dos fazendeiros na região. Percebam também que não há muito a se comemorar quando um prefeito se diz “disposto” a cumprir a “a lei vigente” e ainda fala em regular as novas áreas “a serem desmatadas” em seu município, Querência (do tamanho de Sergipe), também divulgado na Internet como “a grande promessa para o agronegócio nos próximos anos”. Detalhe negativo: pela declaração parece que o tal prefeito quer respeitar só as áreas maiores, o que pode ser lido tanto como que vai haver grandes e pequenos desmatamentos generalizados, quanto que as áreas menores estão liberadas para desrespeitar a lei. “Juntar forças naquilo que nos é comum” e “colocar o foco” na proteção do rio Xingu, como defende o coordenador da campanha, pode parecer uma boa idéia, mas, por ser uma obviedade, cai desprovida de significado. Juntar forças como?  Contra quem, especificamente? Às vezes, acho que uma crítica a um “parceiro” pode ser mais útil, como a que pretendo fazer aqui.

Acredito que, se há uma fotografia de mulher com o poder de salvar o Xingu, é a da índia Tu-Ira segurando o seu facão a um palmo da fronte do representante do capital, o engenheiro, ex-presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz (que compunha a mesa diretora dos trabalhos de discussão do projeto das hidrelétricas no ginásio coberto de Altamira, em meio a protestos dos índios Kayapó contra a construção das barragens em 1989). Imagem esta que correu o mundo e virou um símbolo poderoso da luta contra as hidrelétricas do Xingu, estrategicamente colocada na orelha da contracapa de Tenotã-mõ. E não a figura da modelo gaúcha, que aparentemente foi ao Xingu mais para vender calçados (a Ipanema Gisele Bündchen), e produzir uma campanha publicitária que incluía, ao fim do reclame, um sussurro praticamente incompreensível “Y Ikatu Xingu”, e que já vendeu em todo o mundo o equivalente a mais de 100 milhões de dólares em sandálias.

Tenotã-mõ, na língua dos índios Araweté, do médio Xingu, é uma palavra-chave que significa “ação inauguradora” e foi escolhida como título em referência ao gesto da índia kayapó. Uma escolha absolutamente adequada para um livro contestador, que lembra, já em sua mensagem de abertura (assinada por Dom Erwin Kräutler, Bispo do Xingu), como os índios Arara do igarapé Penetecaua, que viviam onde hoje passa a rodovia Transamazônica, foram perseguidos por cachorros, e como os que não foram extintos à bala, morreram de gripe, tuberculose e malária no início dos anos 1970 com a abertura da rodovia. Acima de tudo, Tenotã-mõ é um nome adequado, pois ele próprio, o livro, também é um gesto inaugurador, de sintetizar uma luta que já dura vinte anos e se prolongará por outros tantos mais (por vários governos e novas edições do livro), pois, se por um lado, barrar todos os rios é uma “obsessão da engenharia mundial”, como observaram Glenn Switkes e o professor Sevá no resumo executivo do livro,  por outro, os xinguanos não vão permitir que seu rio de praias de areia branca e corredeiras seja desfigurado em um sistema de lagos assim tão facilmente.

 

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