Correio da Cidadania

Populismo e luta de classes no século XXI

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No prefácio do Capital, Marx já refletia que o desenvolvimento das forças produtivas obriga necessariamente a um reajustamento de toda a superestrutura. É desta forma que os próprios intelectuais marxistas, inseridos no campo de ação deste nível da realidade, têm necessariamente que atualizar os seus conceitos em relação às novas demandas que a realidade objetiva impõe no contexto das transformações infra-estruturais. Uma questão desconcertante no momento é a forma de conduzir o Estado brasileiro no governo Lula, onde se pode notar uma fusão de elementos característicos da política brasileira e latino-americana tradicionais do século XX a elementos característicos das novas conjunturas do início do século XXI, de modo que as ações do governo já não se encaixam mais dentro das categorias de análise usuais.

 

A facilidade com que este governo desmobilizou os movimentos sociais sem que suas demandas tenham deixado de existir, continuando a ser pressionados pelas condições objetivas a tomar atitudes que, surpreendentemente, não são tomadas, é de impressionar. A grande questão que se coloca para mim, enquanto historiador marxista, é a imobilidade a que puderam chegar as classes exploradas e oprimidas em um contexto absurdo. A simples análise das estratégias políticas do governo Lula não me parece ser suficiente para gerar qualquer explicação plausível. Considero mais útil analisar como essas estratégias, de modo geral, se relacionam com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, sem a qual nossas categorias de análise dificilmente conseguirão dar respostas consistentes às atuais demandas de ação política revolucionária no nível dos movimentos sociais.

 

Marx defendia que as sociedades não se colocam questões que não possam responder. Tendo passado parte da tormenta que nos pegou relativamente de surpresa nas últimas décadas, já com a vista a partir do início da segunda década do século XXI, creio ser possível começar a ver algum horizonte de análise teórica marxista sobre o mundo do terceiro milênio que se avoluma à nossa frente.

 

A luta de classes ainda é para mim uma categoria de análise de fundamental importância para compreender a realidade. A precipitação sem pé nem cabeça de alguns "pensadores" pós-modernistas de que esta não existe se dá devido a uma incompreensão da realidade decorrente de uma vertiginosa aceleração das transformações característica da vida moderna em meio a uma revolução tecnológica em processo. Quer dizer, o resultado da aceleração das transformações características da modernidade em meio à revolução tecnológica do final do século XX é a confusão teórica assumida pelos pós-modernistas como a condição intelectual última da raça humana. No entanto, não é. Trata-se apenas de uma fase de transição conjuntural.

 

Na verdade, esta ilusão em alguns de que a luta de classes teria sido abolida se dá pela inadequação dos conceitos clássicos de luta de classes dos séculos XIX e XX aplicados anacronicamente à análise das condições objetivas do século XXI. A contradição que serve de sustentação para a luta de classes me parece ainda muito sólida: a riqueza das sociedades ainda é produzida por uma grande maioria enquanto a sua apropriação se dá por uma pequena minoria de proprietários burgueses. A automatização da produção não mudou a essência deste fato econômico básico. A grande questão é que estávamos acostumados a ver este processo no nível das economias nacionais, o que tem que ser repensado diante da economia globalizada deste novo século.

 

Neste contexto, temos alguns fatores de fundamental importância para serem pensados. A abertura das economias nacionais com as políticas neoliberais fez com que a produção das multinacionais fosse realizada em países subdesenvolvidos e periféricos como a China, visando não exatamente a conquista de seu mercado interno e sim a conquista do mercado internacional, com a exploração da mão-de-obra sob um regime de trabalho que poderíamos dizer praticamente de semi-escravidão, onde as taxas de lucro são maximizadas como não se via há várias décadas no capitalismo. Este é somente um exemplo breve. O que é importante refletir daí é que, se a produção industrial é globalizada, a apropriação é ainda não somente concentrada nas mãos das mesmas velhas burguesias nacionais, como também centralizada nos mesmos velhos países imperialistas, numa rede global de exploração que une classes dominantes e governos de vários países. Quer dizer, não somente as bases econômicas e políticas, mas também a hierarquia da estrutura social, estão, de certa forma, globalizadas e têm necessariamente que ser pensadas em conjunto.

 

Nas conjunturas econômicas e políticas do novo século, cuja análise marxista já adquiriu há algum tempo um bom nível de maturidade, o importante é considerar que a abertura das economias nacionais também fez com que a democracia burguesa, já extremamente limitada, perdesse quase todo o seu já pouco sentido. As economias nacionais passam a ser cada vez mais reguladas por Instituições Financeiras Internacionais como o Banco Mundial, o FMI e outras como a OMC, aumentado a submissão e a impotência dos governos nacionais com a desregulamentação dos mercados, onde os governos dos países "em desenvolvimento", dependentes dos investimentos do capital estrangeiro, se sujeitam a todos os ditames dos especuladores das bolsas de valores, assim como às imposições dos países desenvolvidos, que controlam direta ou indiretamente essas instituições. Isso sem falar que, com as privatizações que conduziram ao Estado mínimo, tem-se parte dos serviços públicos que antes eram direitos garantidos por lei controlados por ONG’s que, por sua vez, são controladas por seus financiadores internacionais.

 

Sobre as conseqüências sociais desta base econômica, analisadas a partir de uma perspectiva dialética, o importante é que a visão sobre a luta de classes – e, consequentemente, as formas de organização e ação da classe trabalhadora – ainda está ligada ao contexto histórico do nacionalismo do século XX já em muitos sentidos superado. Se a exploração e a opressão se organizam e atuam em nível global, a resistência deve também se organizar e atuar em nível global.

 

Nesta perspectiva, é de fundamental importância que se leve em consideração que as novas formas de organização e atuação em nível global vão exigir que as classes exploradas e oprimidas se relacionem com diferentes culturas, diferentemente da visão do século XIX, que pressupunha muito ingenuamente que toda a classe trabalhadora pudesse de alguma forma ser homogênea. Para a formulação de estratégias de organização e atuação de nível global das classes exploradas e oprimidas, é indispensável que se vençam as barreiras culturais, como o preconceito e a incompreensão de línguas estrangeiras, assim como é necessário que se vença o corporativismo. Mais do que nunca, o conceito da dialética materialista de unidade da diversidade deve ser explorado em todas as suas possibilidades críticas revolucionárias na construção das novas estratégias.

 

Da mesma forma que novas formulações realistas exigem a análise das interações dialéticas entre infra e superestrutura, entre os níveis econômico, social e político da realidade numa perspectiva global, exigem também uma análise das interações entre as novas formas que assumem os Estados-Nação em relação ao mundo globalizado. É bom nunca perder de vista que uma análise dialética deve necessariamente transitar entre o nível concreto e abstrato, objetivo e subjetivo, geral e específico, desvendando os tipos de interações estabelecidas entre as partes que compõem a realidade enquanto um todo, pois grande parte das ilusões da visão pós-modernista vem justamente da insistência na ilusão de que a realidade é composta puramente por fragmentos inexoravelmente dispersos sem qualquer conexão entre si.

 

Desta forma, no que se refere ao contexto político nacional, Lula é uma espécie de Bernstein brasileiro do século XXI. No entanto, se o alemão do início do século XX propõe uma conciliação social-democrata com a sociedade burguesa, contribuindo fortemente para a desmobilização do potencial revolucionário internacional da classe operária, Lula, que tem um papel semelhante no século XXI, não é apenas uma atualização do entreguista que o precede. O petismo/lulismo pode ser visto como a expressão mais acabada de um projeto social-democrata de conciliação de classes brasileiro que, ao se utilizar das práticas e concepções desenvolvidas tradicionalmente neste país para conseguir se adequar às exigências dos especuladores financeiros e aos receituários das instituições financeiras internacionais, envereda inevitavelmente para um tipo de reinvenção do populismo.

 

Em outras palavras, o projeto petista acaba se configurando como a reinvenção do populismo, adequando-o ao contexto econômico, social e político do século XXI, abrindo mão do caráter nacionalista característico do populismo do século XX, em meio às novas conjunturas decorrentes do atual nível de desenvolvimento das forças produtivas. Serve de base de sustentação para a centralização geográfica e a concentração social do processo de acumulação global de capital, amenizando, com diferentes formas de atualização das velhas práticas políticas populistas, qualquer possível ímpeto revolucionário da maior parte de uma massa explorada, oprimida e confusa. Ou ainda, o neopopulismo petista/lulista se configura como uma atualização das práticas populistas tradicionais de uma conjuntura nacionalista ao desenvolvimento das forças produtivas que conduziram a um novo nível de integração global das estruturas econômicas, sociais e políticas.

 

Estas são idéias que buscam contribuir para uma análise marxista mais profunda e ampla das demandas revolucionárias e das condições objetivas em que se dão as lutas de classes no século XXI. Antes como hoje, e enquanto as sociedades humanas forem divididas entre explorados e exploradores, oprimidos e opressores, ecoam os postulados de grandes marxistas como Lênin, sobre "O que fazer". Como Engels dizia, as sociedades humanas têm apenas duas opções: "socialismo ou barbárie".

 

Armando Pompermaier é professor de História.

E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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Comentários   

0 #12 Trogloditas da pseudoesquerdaJosé Deda 24-09-2010 14:03
Aceitar e apoiar um governo burguês que se aproveita do seu passado operário pra manipular, iludir e explorar a classe trabalhadora é corroborar com o sistema troglodita em que vivemos.

As migalhas que os discípulos do populismo/lulismo/petista chamam de conquistas, não passam de políticas compensatórias que têm como único objetivo engessar as lutas da classe trabalhadora.

Este governo que é uma mãe para os banqueiros e a alta burguesia nacional e internacional não tem coragem nem vontade de enfrentar a direita, afinal estão no mesmo barco.
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0 #11 Pró-imperialismoJosé Deda 24-09-2010 14:02
Um governo burguês travestido de operário é tudo que o imperialismo mais ama. Pois assim os sindicatos, associações e partidos operários são cooptados, e fazem tudo que o "pau mandado" do império ordena.

Lógico que não quero a volta da direita tradicional, mas é urgente a construção de ferramentas anticapitalistas pra enfrentar os governos burgueses assumidos e os travestidos!
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0 #10 Carlos 23-09-2010 15:33
"A facilidade com que este governo desmobilizou os movimentos sociais sem que suas demandas tenham deixado de existir, continuando a ser pressionados pelas condições objetivas a tomar atitudes que, surpreendentemente, não são tomadas, é de impressionar." Ora, é a luta de classes que faz um governo, e não o governo que faz a luta de classes. A verdade é que não queremos aceitar que a resposta a esse problema já está dada. Uns preferem sectarizar-se dentro de algum partido, outros, encastelar-se na academia. A saída é justamente forçar o atual cenário da luta de classes. Mas isso dá muito trabalho... poucos estão dispostos a doar o tempo e a vida pra isso!
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0 #9 acreditar mais?Cezar Tigreiro 23-09-2010 10:43
A conjuntura hoje do governo petista está muitíssimo distante de suas propostas quando da sua fundação e mesmo nos momentos antes em que precedeu a chegada ao poder. Depois de oito anos não se vê mais notícia de qualquer autocrítica. Toda reivindicação é tratada com dissimulação ou esquecimento - vide TV Brasil, CONFECOM, Carta do Programa de futuro governo de Dilma, etc.. -. O inchaço e descontrole do partido, as cooptações da sua ala majoritária e o mix da composição do governo (a própria Dilma, ex-PDT) são uma pequena mostra de que já passa do momento de uma reciclagem severa, caso os intelectuais desse partido tenham interesse em manter a honra das conquistas da esquerda... Mas pelo visto a segurança político-financeira vem falando mais alto. Depois de tudo isso o governo ainda se escora na "ideologia" como fachada, com vistas a prorrogar o embuste direitista pelo qual o país vem sendo conduzido, e cada vez mais o será, com a palavra o futuro vice Michel Temer. Essa conversa de golpe tucano-midiático é apenas para a boiada eleitoral engolir. O golpe verdadeiro já foi dado, homeopaticamente, silenciosamente... e atende pelo nome de contemporização ou, nos piores momentos, com o bom e velho jargão: "os fins justificam os meios". Queremos ATITUDES da Sra. Dilma, chega de embromação!
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0 #8 Teoria marxistaDulcinéa Santos Carvalho 22-09-2010 21:42
É impecável a dissertação do teórico-marxista. Mas, e a realidade, companheiro? O que fazer ou \"como fazer\". Impor uma ditadura pelas armas? Está em desuso, pelo que sei. Governar sem aliados no Congresso? Fechar o Congresso?
Bem, desculpe a minha ignorância. Mas neste momento, fazer coro com a direita troglodita é... o que seria? Que nome dar a isto? Você vê avanços num governo, construído e sustentado por um partido de esquerda (nas suas origens, que seja!), percebe pontos passíveis de crítica. Outrossim, com os ataques da mídia, sustentáculo da direita troglodita, deixar de defender? Engrossar o coro dos que atacam?
Não quero engrossar o coro dos contentes, mas não posso deixar de defender o \"um passo à frente\".
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0 #7 LulismoJosé Deda 22-09-2010 07:09
O neopopulismo de Lula/PT é um populismo sem nacionalismo.
>
> Disse tudo aí!
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0 #6 Ainda não caiu na realJosé Deda 22-09-2010 07:08
O Sr. Ezio, apenas não consegue acreditar e aceitar que o "partido dos trabalhadores" se igualou ao PSDB. Ele acha que qualquer crítica ao PT significa apoio aos reacionários da direita, uma direita tão maléfica quanto a direita travestida de esquerda(PT,PCdoB,etc.)
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0 #5 Consciência de ClasseCristiano Cabral 21-09-2010 12:48
Formidável análise co colega Armando. Uma análise sóbria e conjuntural. talves seja o que ele chama de novo pupolismo juntamente da reestruturação do capitalismo pós-73 ( adicionando à queda do socialismo real) que tem como consequencia imediata a crise ideológica da esquerda. Afetando assim a consciência de classe. A santificação do lulismo não ajuda ao processo revolucionário nem de que iníciou a crise da esquerda se Lula ou FHC, mas analisar a situação, mesmo que seja uma reavaliação do PT desde 1994, quando iniciou de ser socialista, à conjuntura nacional e internacional para criar (ainda) condições para uma saída da BARBÁRIE. E que Deus tenha piedade de nós se isto não acontecer.
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0 #4 Lulismo ou populismo?Chico Xarão 21-09-2010 07:03
Armando, muito bom teuj artigo no que respeita ao resgate das formulações clássicas do marxismo e da possibilidade da aplicação da dialética para a avaliação da conjuntura. Porém, concluir sumariamente que o Petismo e o Lulismo são repetições do populismo é, no mínimo, fazer pouco da dialética. Sim, o PT, infelizmente não inovou em termos de estratégia para a transição ao socialismo e repete os erros e acertos dos grandes partidos de esquerda da europa. Lula sim opera com forma e simbolos do populismo clássico, mas seu conteudo é diverso e ainda pouco definido. Como disse o jovem marx "os homens fazem a história,mas não a fazem como querem, mas segundo condições herdadas das gerações passadas". Eu prefiro lutar contra o nacional desenvolvimentismo da maioria do PT do que contra o neoliberalismo de FHC.
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0 #3 lulismoNey Ricardo 21-09-2010 06:54
Assistimos o desmantelamento dos sindicatos X o fortalecimento das instituições financeiros, com uma certa dosagem de assistencialismo, assim se pauta o lulismo, um governo malabarita, político/demagogo, que causa aos olhares imprudentes a vertigem de um suposta mobilidade social, confundindo e desmobilizando qualquer perspectiva de uma transformação social.
É isso mesmo Armando,vamos \"desafinar o coro dos contentes\"
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