Correio da Cidadania

Futebol é arte e religião

0
0
0
s2sdefault

 

Sou um analfabola. Ou seja, nada entendo de futebol. Todas as vezes que me perguntam para qual time torço, fico tão constrangido como mineiro que não gosta de queijo.

 

Torci, na infância, pelo Fluminense do Rio e o América de Belo Horizonte. Influência materna. Mais tarde, fui atleticano por um detalhe geográfico: minha avó morava defronte do estádio, na avenida Olegário Maciel, na capital mineira. E só. Sem contar a emoção de ter estado no Maracanã na noite de 14 de novembro de 1963 para assistir, misturado a 132 mil torcedores, aquele que é, por muitos, considerado o jogo dos jogos, a disputa entre Santos e Milan pelo Mundial Interclubes!

 

Hoje, me dou ao luxo de assistir, pela TV, às decisões de campeonato. Escolho para quem torcer. E não perco Copa do Mundo. Jogo do Brasil é missa obrigatória.

 

Eu disse missa? Sim, sem exagero. Porque, no Brasil, futebol é religião. E jogo, liturgia. O torcedor tem fé no seu time. Ainda que o time seja o lanterninha, o torcedor acredita piamente que dias melhores virão. Por isso, honra a camisa, vai ao estádio, mistura-se à multidão, grita, xinga, aplaude, chora de tristeza ou alegria, qual devoto que deposita todas as suas esperanças no santo de sua invocação.

 

O futebol nasceu na Inglaterra e virou arte no Brasil. Na verdade, virou balé. Aqui, tão importante quanto o gol são os dribles. Eles comprovam que nossos craques têm samba no pé e senso matemático na intuição. Observe a precisão de um passe! No gramado, imenso palco ao ar livre, se desenha uma bela e estranha coreografia. Faça a experiência: desligue o som da TV e contemple os movimentos dos jogadores quando trombam. É uma sinfonia de corpos alados. Fosse eu cineasta, editaria as cenas mais expressivas em câmara lenta e as adequaria a uma trilha sonora, de preferência valsa, ritmando o flutuar dos corpos sobre o verde do gramado.

 

O Brasil conta com 190 milhões de técnicos de futebol. Todos dão palpite. E ninguém se envergonha de fazê-lo, como se cada um de nós tivesse, nessa matéria, autoridade intrínseca. Pode-se discordar da opinião alheia. Ninguém, no entanto, ousa ridicularizá-la.

 

Pena que a violência esteja contaminando as torcidas. Outrora, elas anabolizavam, com sua vibração, o desempenho dos jogadores. Agora, disputam no grito a prevalência sobre as torcidas adversárias. E se perdem no jogo, insistem em ganhar no braço. A continuar assim, em breve o campo será ocupado não pelo time, e sim, como uma grande arena, pelas torcidas. Voltaremos ao tempo dos gladiadores, agora em versão coletiva.

 

Quando ouço a estridência de vuvuzelas, como um enxame de abelhas a nos picar os tímpanos, penso que os torcedores já não prestam atenção ao jogo. Querem transferir o espetáculo do gramado para as arquibancadas. O ruído da torcida passa a ser mais importante que o desempenho dos jogadores.

 

Nossa auto-estima como nação se apóia, sobretudo, na bola. Não ganhamos nenhum prêmio Nobel; nosso único santo, frei Galvão, ainda é pouco conhecido; e nossa maior invenção – o avião – é questionada pelos usamericanos. Porém, somos o único país do mundo pentacampeão de futebol. Se a história dos países europeus do século XX se delimita por duas guerras mundiais, a nossa é demarcada pelas Copas. E nossos heróis mais populares eram ou são exímios jogadores de futebol. A ponto de o mais completo, Pelé, merecer o título de rei.

 

A Copa é um acontecimento tão importante para o Brasil que, no dia do jogo da nossa seleção, se faz feriado. Se vencemos, a nação entra em euforia. Se perdemos, somos tomados por uma triste estupefação. Como se todos se perguntassem: como é possível o melhor não ter vencido?

 

Gilberto Freyre bem percebeu que na arte futebolística brasileira mesclam-se Dionísio e Apolo: a emoção e a dança dos dribles são dionisíacos; a força da disputa e a razão das técnicas, apolíneos.

 

Criança, eu escutava futebol no rádio. Quanta emoção! Completava-se a imaginação com a descrição do narrador. Hoje, não há locutores na transmissão televisiva, apenas comentaristas. São lerdos, narram o óbvio e, palpiteiros, com freqüência esquecem o que se passa no campo e ficam a tecer considerações sobre o jogo com seus assistentes.

 

"Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma", poetou Carlos Drummond de Andrade. Com toda razão.

 

Frei Betto é escritor, autor de "Maricota e o mundo das letras" (Mercuryo Jovem), entre outros livros. www.freibetto.org <http://www.freibetto.org> twitter:@freibetto.

 

Copyright 2010 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

 

{moscomment}

Comentários   

0 #3 Vera Lúcia B.Gomes 11-07-2010 19:21
Concordo com os comentários do Frei Beto.Contudo, acrescentaria dois aspectos que me afastam do futebol: o jogo de interesses do grande capital que envolve o futebol, assim como, os altos salários que os jogadores ganham, enquanto que outros profissionais que podem contribui muito mais para uma sociedade mais emancipada,´percebem salários incomparávelmente irrisórios.
Isto é uma violência....
Citar
0 #2 Pedro Selomar Sehn 08-07-2010 19:52
Parabenizo Frei Betto por mais um ótimo artigo. Concordo quando diz que não há locutores, mas comentaristas. Neste aspecto e por só haver duas opções de canais abertos para ver a Copa, prefiro a Band porque os comentários são mais consistentes e não se idolatra um ou outro jogador. Na outra emissora, o jornalista que se acha \"o dono da verdade\" gosta de puxar o saco de dois ou três jogadores. Falei com pessoas que viram o jogo Brasil 1 x 2 Holanda na emissora que se acha \"acima do bem e do mal\" e elas me disseram que não houve comentário que deveria trocar o Kaká pelo Nilmar como o Neto fez na Band. Claro, o Kaká é um dos \"queridinhos\" do que manda nos esportes da emissora que possui a maior audiência.
Citar
0 #1 Wendell 07-07-2010 06:05
E ainda temos que escutar o Galvão Bueno dizer em rede nacional. Isto é apenas uma partida de futebol. Coitado!
Citar
0
0
0
s2sdefault