Correio da Cidadania

O candidato Serra, Irã, Israel e Bolívia

0
0
0
s2sdefault

 

O pré-candidato a presidente José Serra, da coligação PSDB-DEM-PPS, não se pronunciou sobre o ato de pirataria do Estado de Israel, ao assaltar em águas internacionais um navio turco mercante, contratado para levar ajuda humanitária à Faixa de Gaza. Como se sabe, tropas de Israel invadiram o barco turco, mataram nove e feriram centenas de tripulantes e passageiros e seqüestraram todas as cargas e todos os navios, tripulantes e passageiros que integravam o comboio pacífico. Condenado retoricamente, Israel ainda não sofreu nenhuma sanção por parte das Nações Unidas e sequer admite, até agora, qualquer investigação internacional do grave incidente. O pré-candidato José Serra se manteve silencioso sobre o episódio e sobre a justa posição brasileira de condenação a essa ação delituosa e prepotente de Israel.

 

Ontem, porém, em visita a Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, o pré-candidato José Serra considerou necessário criticar a intervenção diplomática do Brasil em favor do Irã, que acaba de sofrer novas sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas por insistir na manutenção de seu programa nuclear. A propósito, o Estado de Israel desenvolveu seu programa nuclear e se tornou uma potência nuclear média sem ser incomodado. O pré-candidato do PSDB, apoiado pelo DEM e pelo PPS, justificou sua posição alegando que  "o Irã não é confiável, tem um governo violento que manda para a forca, sem piedade, todos os seus opositores." 

 

Além do evidente exagero de afirmar que o governo iraniano manda enforcar todos os opositores, o pré-candidato José Serra não julgou necessário fazer nenhuma alusão às ameaçadoras circunstâncias em que vive a nação iraniana há várias décadas. Em 1953, o governo nacionalista e democrático de Mohamed Mossadegh foi deposto por um golpe sangrento, articulado e sustentado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos. Duas décadas e alguns anos depois, derrubado o xá e tirano Reza Pahlevi, o governo de Washington insuflou e apoiou o governo iraquiano de Saddam Hussein para que se lançasse numa guerra fratricida contra o Irã. Atualmente, o Irã vive espremido entre duas zonas de guerra, as do Iraque e do Afeganistão, países invadidos e ocupados pelos Estados Unidos e seus aliados. E quase todos os dias sofre ameaças de ataque por parte de Israel ou das tropas, navios e aviões que os Estados Unidos mantêm no golfo Pérsico e em suas imediações. É óbvio que  a vida política e as instituições democráticas do Irã não podem deixar de sofrer restrições diante de ameaças tão graves e iminentes a sua soberania e sobrevivência.

 

A Constituição brasileira dispõe em seu  artigo 137: "O presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira". O artigo 138 acrescenta: "O decreto  do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas". O parágrafo 1º do mesmo artigo reforça: "O estado de sítio, no caso do artigo 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira". As leis fundamentais de todos os países democráticos contêm dispositivos semelhantes.

 

É verdade que o Irã ainda não enfrenta uma nova agressão armada direta, nem seu governo decretou estado de sítio ou de guerra no país. Mas somente o formalismo de bacharéis pode ignorar as circunstâncias ameaçadoras em que vive a nação iraniana, contra as quais procura resguardar-se seguindo suas próprias tradições culturais e instituições políticas. Todos os patriotas iranianos, da situação e da oposição, têm o dever de levar em conta essas circunstâncias excepcionais e restritivas, que precisam ser consideradas também pelos políticos e governos progressistas dos demais países.

 

Ainda em Campo Grande, o pré-candidato José Serra voltou a criticar a Bolívia pela grande quantidade de cocaína que, segundo sua avaliação, é fabricada no território desse país e contrabandeada para o Brasil. Ressalvou que não condena o país por essa situação, lembrando, inclusive, que a Bolívia o abrigou em sua embaixada e em seu território após o golpe brasileiro de 1964. Mas reafirmou que condena o governo de Evo Morales, "que mantém corpo mole  e faz vistas grossas a tudo que está acontecendo de ruim, em conseqüência dessa droga que é produzida em larga escala na Bolívia".

 

Na prática, a distinção entre condenar o governo, mas não o país, é difícil de operar, porque Evo Morales é o presidente legalmente eleito da Bolívia e representante legítimo do país nas relações com os demais. O governo de La Paz poderia, além disso, retrucar que o Brasil também faz corpo mole e não controla as substâncias químicas que produz e exporta para a Bolívia legal e ilegalmente, as quais viabilizam a transformação da coca em cocaína.

 

Fica claro que o mais relevante é refletir a que propósitos e a que poderoso país pode servir uma controvérsia posta nesses termos simplificados e perigosos. O essencial é que os países latino-americanos se unam no difícil combate à produção, comercialização e consumo da cocaína e de outros entorpecentes, discutindo amistosamente responsabilidades e medidas para enfrentar essa praga social, e não permitindo que eventuais divergências nesse combate prejudiquem as lutas mais importantes que precisam travar na defesa de suas soberanias e pelo desenvolvimento econômico e pela justiça social de que seus povos tanto carecem. Somente na visão interessada dos Estados Unidos, o narcotráfico é o principal problema da América Latina e o principal critério para aferir países e demarcar alianças.

 

Duarte Pacheco Pereira é jornalista.

 

{moscomment}

0
0
0
s2sdefault