Correio da Cidadania

Divisões muito perigosas

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Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 366 pp.) traz 46 artigos, de 38 autores, além de apêndices, sobre a proposta de divisão racial da sociedade brasileira e fim do princípio republicano e democrático de igualdade cidadã, apresentada através de projetos de lei, quase aprovados em 2006, sem qualquer conhecimento e real discussão por parte da população. Nas aparências socialmente reparadoras, esses projetos de lei, se aprovados, determinarão modificações patológicas estruturais à sociedade nacional.

 

Os projetos de lei das Cotas Raciais (PF 73/99) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), atualmente em tramitação no Congresso, propõem a divisão da população nacional em duas “raças”, ao obrigar o brasileiro a definir-se, necessariamente, em documentos públicos, como “negro” ou “branco”, e estabelecem privilégios institucionais restritos aos que optarem pela primeira alternativa. Em alguns estados, esse último princípio já foi introduzido em algumas instituições públicas.

 

Em geral, os artigos de Divisões perigosas foram publicados em periódicos nacionais. Portanto, são textos breves, de fácil e agradável leitura que, por sua natureza, apresentam mas não aprofundam os argumentos. Coordenam a publicação Peter Fly, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro, Ricardo Ventura Santos. O livro apresenta a visão sobretudo de advogados, antropólogos, economistas, geneticistas, geógrafos, historiadores, jornalistas, médicos, sociólogos etc.

 

Em forma esmagadoramente dominante, os autores vivem e trabalham em São Paulo e, sobretudo, no Rio de Janeiro. Nos fatos, há apenas um autor residente na França, um no Distrito Federal, um em Minas Gerais e um no Rio Grande do Sul, neste caso, quem escreve o presente comentário. Pelo caráter da discussão, ressente-se a falta sobretudo de opiniões de autores de outras regiões, com destaque para o Maranhão e a Bahia. Uma maior participação de lideranças e ativistas dos movimentos sociais ampliaria ainda mais a já enorme contribuição dessa publicação.

 

Crítica democrático-republicana

 

O grande aporte de Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo é apresentar um amplo quadro das múltiplas visões que se opõem, desde um ponto de vista democrático-republicano e, portanto, nacional e universalista, a idéias, propostas e iniciativas de “racialização” do Brasil, introduzidas sobretudo pela administração FHC, a partir de 1995, e aceleradas, a seguir, desde 2003, no primeiro e no atual governos de Lula da Silva.

 

Alguns temas destacam-se no livro: a oposição ao re-restabelecimento sociológico, político e médico do conceito “raça”, construção esdrúxula sobretudo  do colonialismo e do imperialismo nos séculos 19 e 20, fulminado pela comprovação científica da unidade essencial do gênero humano, por além de diferenciações sobretudo epidérmicas; a crítica da obrigação de opção entre as “raças” “branca” e “negra”, prática abjeta que, além de historicamente derrotada, violenta as ricas multiplicidade e interpenetração étnicas brasileiras.

 

É forte também a denúncia da proposta de racialização do Brasil,  que objetiva pôr fim ao princípio de cidadania unitária, em favor da organização da sociedade em comunidades de ascendência africana, nativa, italiana, japonesa, etc., vivendo no mesmo território, supostamente separadas por valores distintos, negociando direitos e privilégios através de direções étnicas. Idéia que se contrapõe às divisões sociais e à riquíssima interpenetração étnica brasileira. Como lembra um dos autores, quase noventa por cento da população brasileira branca tem pelo menos dez por centro de ancestralidade africana.

 

É igualmente dura a crítica às tentativas de restabelecimento da materialidade do conceito “raça”, através da defesa de pretensas correlações objetivas entre “raça” e “doença”. Operação que tem como vetor a proposta de discriminação na documentação médica da “cor” dos pacientes, para melhor tratar doenças ditas “afro-descendentes”. Yvonne Maggie esclarece que a anemia falciforme, cavalo de batalha dessa proposta esdrúxula, sequer é doença genética negro-africana, mas enfermidade comum na África, Mediterrâneo, Oriente Médio e Índia. Devido à enorme miscigenação do Brasil, a doença superou quaisquer fronteiras étnicas. Identificá-la a qualquer comunidade não só é um erro como também um enorme desserviço à saúde pública.

 

Desigualdades inaceitáveis

 

Centrados na defesa dos princípios democrático-republicanos, os autores discutem menos sobre as razões e, sobretudo, os objetivos profundos das propostas de transformação do Brasil em uma sociedade gerida segundo “raças” arbitrariamente construídas. Aprofundam também em forma limitada as propostas fundamentais de superação das inaceitáveis seqüelas sociais, econômicas, culturais e ideológicas deixadas sobretudo por mais de três séculos de escravismo no Brasil.

 

Onde se avança nessa direção, afloram visões em alguns casos contraditórias. Aqui e ali, esboçam-se propostas de criação de cursinhos vestibulares para a população pobre, em dissidência com a defesa do direito de todo jovem que terminar o segundo grau ter acesso à universidade pública e gratuita. Há até mesmo singular defesa oblíqua da “democracia racial” brasileira, através da apologia de Gilberto Freyre, o célebre teórico da associação hierárquica complementar de “brancos”, “negros” e “índios” na construção do Brasil; das benignidades da escravidão nordestina; da comunhão de interesses de escravizados e escravizadores; das doçuras das relações raciais no Brasil; da obra civilizacional do luso-tropicalismo.

 

Alguns autores lembram pertinentemente que os governos neoliberais de FHC e de Lula da Silva abraçaram satisfeitos as propostas das políticas de “cotas” nas universidades e em algumas funções públicas, e o apoio à extensão à esfera privada do princípio de “discriminação racial”, pois não custam literalmente nada aos cofres públicos, já que apenas distribuem diversamente o pouco concedido à população. Exigem também a efetiva universalização dos direitos sociais mínimos inarredáveis dos cidadãos, garantidos pela própria Constituição e jamais realmente aplicados no Brasil, em geral sob a justificativa de falta de recursos.

 

José Roberto Militão aponta com maior precisão algumas razões cavernosas do surgimento da militância pró-racialização por tendências do movimento negro organizado: “A defesa de leis raciais equivale a legitimar o ideal do opressor, numa lastimável versão da Síndrome de Estocolmo em que militantes negros organizados, numa insensata busca de clientela cativa, manifestam interesse político no afloramento de conflitos raciais”. Ou seja, rejeita duramente a agitação racista com o objetivo de se construírem posições de liderança.

 

Direitos para todos, não para poucos

 

Destacam-se no livro os artigos de Roque José Ferreira e José Carlos Miranda. Eles lembram que as propostas de cotas e de racialização do país, defendidas, implementadas e financiadas pelas sempre mais do que suspeitas grandes corporações e organismos internacionais, como a Fundação Ford e o Banco Mundial, dividem e enfraquecem a classe trabalhadora brasileira, formada por negros, pardos e brancos pobres. Propõem portanto que se trate de política que interessa aos poderosos, ao enfraquecer os oprimidos.

 

Esses dois intelectuais e militantes do Movimento Negro Socialista lembram que tais políticas obtêm, quando muito, a ascensão social de alguns “negros” isolados, sobretudo das classes médias, deixando a enorme população afro-descendente no desamparo de sempre. Caracterizam-nas como soluções elitistas, à margem dos interesses das grandes massas negras pobres. Assinalam que não se trata de alguns negros irem viver nos bairros chiques brancos, mas de acabar para sempre as deficiências inaceitáveis dos bairros pobres, onde convivem brancos, pardos e multidões de negros.

 

Roque José Ferreira fere forte, ao analisar a divisão política no seio do movimento negro: “Não existe possibilidade de conciliação com os negros que negam a questão de classe, pois [...] defendem a integração pura e simples dentro da ordem burguesa. Almejam participar da elite econômica e de seus extratos mais conservadores, contribuindo assim para a perpetuação do racismo e da exploração”. Opõe-se, assim, à proposta de promoção de alguns negros, para, através do enegrecimento relativo dos representantes das classes dos grandes proprietários, consolidar a opressão capitalista sobre toda a população trabalhadora e pobre.

 

No relativo à educação, José Carlos Miranda mostra como matar a cobra e diz onde está o pau. Propõe o óbvio inominável – todo  jovem brasileiro que termina o segundo grau tem o direito inapelável de entrar na Universidade.  E, se o problema é a falta de vagas nas universidades públicas, por que “não federalizar as universidades privadas, que só sobrevivem por meio do recebimento de verbas públicas, ampliando radicalmente as vagas no ensino público?”.

 

Roque José Ferreira e José Carlos Miranda dizem sem papas na língua o que querem, desde agora: educação, trabalho, saúde, terra, segurança, lazer, para toda a população necessitada do Brasil, na qual se destacam os pardos e negros. E dizem algo que deveria ser dito, sempre, em forma alta e bem clara. Dinheiro, para a universalização dos direitos sociais mínimos, garantidos pela Constituição, o Estado tem, sim senhor, e muito! É só acabar com a corrupção e, sobretudo, com a remuneração milionária do grande capital.

 

 

Mário Maestri é professor do curso de Pós-Graduação em História da UPF. É autor, dentre outros livros, de O escravismo no Brasil (12 ed. São Paulo: Atual, 2003).

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