Correio da Cidadania

“Minha Casa, Minha Vida” ignora o que PT e movimentos já fizeram

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Não é verdade que a esquerda apenas critica e não sabe o que propor. A história da luta por moradia no Brasil já produziu diversos exemplos do que poderia ser uma política habitacional diferente da que está sendo promovida pelo programa "Minha Casa, Minha Vida" (MCMV). Isto é, intervenções realizadas com a participação dos movimentos populares, que promoveram ações de reforma urbana, espaços com qualidade arquitetônica e a progressiva desmercantilização da moradia. O próprio PT, em inúmeras administrações municipais na década de 1990, colaborou para que políticas habitacionais fossem parte da transformação urbana e social e não apenas um balcão de negócios para os empresários da construção civil.

 

A experiência mais importante, sem dúvida, foi a da administração Luiza Erundina em São Paulo, entre 1989 e 1992. Erundina, assistente social que atuava em favelas apoiando os movimentos de luta por moradia, foi especialmente dedicada ao assunto, junto com a nova equipe da Secretaria de Habitação, coordenada por Ermínia Maricato, uma professora da USP e militante nas periferias da zona sul da cidade. Pela primeira vez em São Paulo, a política habitacional não estava nas mãos do capital da construção e do setor imobiliário.

 

Comentava-se à época que vivíamos aqui uma transformação nos moldes da Viena Vermelha, dos anos 1920, cuja política habitacional socialista foi emblemática, com seus inúmeros projetos integrados no tecido urbano, transformando a feição da cidade (o mais famoso deles foi o Karl Marx Höff). A experiência paulistana foi importante não apenas pela escala do seu principal programa (o Funaps-Comunitário), mas por ter articulado, numa política pública de novo tipo, movimentos populares e suas assessorias técnicas na gestão direta de fundos públicos para a implementação de projetos de moradia. Foram iniciadas cerca de 100 obras, envolvendo 15 mil famílias. Mais da metade delas, contudo, não teve como ser finalizada na gestão e sofreu nos anos Maluf e Pitta, agonizando até serem concluídas quando o PT retornou à prefeitura, em 2001.

 

Os projetos da gestão Erundina foram um marco na história habitacional do Brasil pós-BNH, tornando-se um paradigma dentro do "programa democrático-popular". Nas obras em favelas, constituiu-se igualmente um novo padrão de intervenção, ao mesmo tempo radical na eliminação das situações de risco e na construção de novas unidades habitacionais, como também mais cuidadoso na requalificação de urbanizações mais consolidadas. A promoção de novas edificações verticais de grande qualidade arquitetônica associadas a urbanizações de favelas em áreas bem situadas, como forma de manter as famílias no local, foi uma grande novidade – depois mobilizada de forma marqueteira e picareta pelo governo Maluf, que utilizava os prédios do Cingapura como outdoors em vias movimentadas para esconder as favelas intocadas que ficavam atrás.

 

Nas obras habitacionais geridas diretamente pelos movimentos, por sua vez, ocorrem diversos avanços: o acesso a terrenos por meio de uma política pública de terras (ao invés de uma política de mercado, como no MCMV); a participação das famílias nos projetos (ao invés de projetos feitos por construtoras); unidades habitacionais maiores (com cerca de 60m² em oposição às de 35-40m² do MCMV); materiais de melhor qualidade, como blocos cerâmicos estruturais (ao invés de casas de concreto); urbanizações mais cuidadosas, com espaços comunitários e praças; projetos que procuravam integrar-se ao tecido urbano do entorno (ao invés de condomínios murados); gestão direta da obra (ao invés de empreiteiras que lucram com o "negócio" de fazer casas para os pobres); incubação de cooperativas e coletivos para atuarem após a conclusão das obras, em padarias comunitárias, creches, cursos, bibliotecas e equipamentos diversos construídos nos conjuntos. Enfim, um processo muito distinto da política habitacional privatista implementada pelo MCMV.

 

Atualmente, talvez a experiência mais avançada em andamento na grande São Paulo, e herdeira dessa história de lutas, esteja sendo levada a cabo pelo MST e por sua assessoria técnica, a Usina. É o projeto Comuna Urbana Dom Helder Câmara, em Jandira, iniciado na administração do prefeito Paulo Bururu (PT) e apoiado com recursos subsidiados e a fundo perdido de diversas fontes (Ministério das Cidades, FGTS, município e governo do estado). Trata-se do primeiro "assentamento urbano" do MST, que se diferencia da forma de conjunto-habitacional por não ser um espaço exclusivamente de moradia.

 

A Comuna Urbana tem como objetivo reintegrar aspectos da vida que foram fragmentados na cidade capitalista. Por isso, em seu território são congregadas, além da moradia (com 128 sobrados de 68m² por família), uma escola infantil e um berçário, um anfiteatro, praças e quadra esportiva, um viveiro de mudas, uma padaria comunitária, um núcleo de áudio-visual, um ateliê de costura, uma oficina de instrumentos musicais, com espaço para a escola de samba da comunidade, a "Unidos da Lona Preta" – conforme indica a planta abaixo.

 

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A obra está atualmente em andamento, gerida diretamente pelas famílias, com administradores eleitos por elas. No fim de semana, ocorrem atividades de mutirão e, durante a semana, a obra é realizada por trabalhadores diretamente contratados pela associação (sem intermediários) e um pequeno empreiteiro. E mais recentemente contratou-se um grupo autogestionário composto por desempregados da comunidade, que já começou a executar os telhados. A propriedade das casas e equipamentos construídos não é individual, mas coletiva. Ninguém será "titulado" com a propriedade do imóvel, pois, por decisão do movimento, o terreno continuará público e as famílias terão concessão de direito real de uso coletivo – uma vez que a conquista é fruto da iniciativa do grupo e não do indivíduo isolado.

 

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Na Comuna Urbana, não se trata de fomentar uma ilha comunitária dissociada da cidade, pois as atividades que ali se desenvolverão estão abertas para o entorno. Mais que uma ilha, trata-se de um "farol" que indica a capacidade de organização dos trabalhadores em definir territórios com qualidades muito distintas das que empreiteiras e governos normalmente realizam, e também distintas dos processos de autoconstrução e favelização das periferias. Um território como o da Comuna Urbana procura a coerência entre a construção do espaço e a construção do poder popular, e torna-se, por isso, uma experiência civilizatória em meio à barbárie, acenando para a classe trabalhadora o que poderia ser uma outra cidade/sociedade.

 

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Mas tudo isso está muito distante do MCMV. Dentro dos 3% de recursos que estão destinados aos movimentos sociais, até podem surgir novas iniciativas como essa, mesmo que suas assessorias técnicas estejam fragilizadas por anos de políticas habitacionais inviáveis - e inviabilizadas constantemente. Mas o programa é montado para que outro tipo de produção da cidade seja dominante: a dos grandes conjuntos ao gosto das empreiteiras. Como dizia Paulo Maluf, justificando seu projeto ‘Cingapura’: "para o favelado, o que vier é lucro". Lucro mesmo é para os que transformaram o problema da moradia em um grande negócio.

 

Veja mais:

 

Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. Alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida' - ESPECIAL

 

Pacote habitacional veio para ‘desovar’ imóveis encalhados, diz empresário

 

Dilma e a gratidão dos construtores

 

"Minha Casa" é a "reconciliação" entre capital e trabalho, afirma Lula

 

Paredes de concreto para as casas da periferia: o novo crime das empreiteiras

 

Capital estrangeiro lucra com pacote habitacional

 

Pedro Fiori Arantes, arquiteto, é coordenador da Usina, assessoria técnica de movimentos populares em políticas urbanas e habitacionais.

 

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Comentários   

0 #5 CRITIQUE mas ELOGIE TAMBÉM !!!!edilson lima 14-10-2009 14:42
Alguns tentaram no passado minimizar o problema da moradia, até aí tudo bem, porém ja tinha anos e anos que nada se fazia,,,, E veio a crise,,, só que para enfrentar a crise só gerando empregos,,,, e para gerar empregos urgentes só mesmo salvando empresas, portanto as críticas a \"MINHA CASA MINHA VIDA\" pelo menos nesse momento que vivemos são minimamente impróprias,são as Construtôras e Empreiteiras que ´gerará mão de obra, ou seja EMPREGOS,, OU SERIA MELHOR NÃO FAZER NADA COMO NO GOVERNO PASSADO DE FHC=PSDB=DEM ???????????
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0 #4 Professora Titualar ESS/UFRJMaria de Fatima Cabral Marques 08-10-2009 14:06
Sou pesquisadora do CNPq e professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro onde coordeno o Núcleo de Pesquisa Favela e Cidadania (FACI) que trabalha com extensão e pesquisa em favelas do Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Autalmente, estamos desenvolvendo um follwow up de uma experiência de urbanização nos moldes favela Bairro e uma pesquisa comparativa entre políticas públicas em favelas no Brasil e na India, coordenada pelo governo francês.Gostei muito da matéria. Penso que se trata de um novo programa que tem sido utilizado para campanha eleitoral presidencial e que há poucos comentários críticos sobre o tema. Devemos prosseguir na crítica para desmascarar o que está escamoteado no discurso oficial. Gostaria de ter acesso a boas matérias como essa.
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0 #3 Luiz Carlos Ramos Cruz 04-10-2009 09:02
Ol@ Pessoal,
É preciso criar chances para discutir e apresentar tais iniciativas ao pres. Lula, do contrário, os empresários da construção civil fazem o que querem.Soube que no PAC Manguinhos, os pisos deste apartamentos ( não é casa térrea) de +/- 42m² serão entregues no concreto, não haverá revestimento(tábua / cerâmica...). Apesar de utiliz\arem a mão de obra da comunidade, a realçao com os mesmos são totralmente desrespeitosas, ue acaba ferindo a dignidade do cidadão. O que se observa é que há pontos positivos, que são similares ao Prijeto Comunas, mas eles se confundem quado a iniciativa privada ( construotras ) está na condução do projeto, pois eles tem um único objetivo = LUCRO
Sds do,
Luiz Carlos
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0 #2 não faz mal, a gente recria o projeto coFabio B. Meira 02-10-2009 17:37
Apenas para lembrar que se é verdade que habitação é em boa medida resultado de um projeto, é também verdade que o uso criativo pode fazer muita diferença. Não vamos perder de vista a capacidade transformadora de quem habita o MCMV, que excede em muito a competência dos tecnocratas em projetá-la.
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0 #1 Comunas - implante emancipatório crucialProf. Édi Augusto Benini 02-10-2009 05:32
Belíssimo artigo do Pedro Arantes, mais um motivo para continuarmos lutanto e acreditanto que outra cidade/sociedade é possível...

Vejam, existe sim opções e estratégias para um governo comprometido com a transformação social, se por um lado a luta de classes e os condicionantes estruturais não permitem uma verdadeira "revolução", por outro lado, por meio de implantes "socialistas" podemos conquistas espaços preciosos na perspectiva emancipatória.

O implante de comunas, urbanas e rurais, no meu entendimento, é um avanço ou mesmo um alicerçe crucial para a emancipação social.

Parabéns ao MST por esse projeto inovador de comuna urbana, que permite a autogestão do espaço, dos serviços públicos como também no sistema produtivo.

Aqui no Tocantins tentamos propor uma metodologia de reforma agrária também na perspectiva de comunas rurais, agora estamos nos organizando na ABRA e buscando envolvimento com os movimentos para quem sabe construir e viabilizar tais alternativas.
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