Correio da Cidadania

O réu eterno

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É impossível agradar a todos. Sempre serei julgado e condenado por alguém. Serei réu eterno no tribunal da humanidade. Sempre haverá um dedo em riste apontado contra mim. Não é paranóia, é constatação. Posso provar.

 

Se eu faço perguntas, sou invasivo. Se não faço, indiferente eu sou.

 

Se eu reclamo das coisas, sou enfadonho. Se não reclamo, acomodado eu sou.

 

Se eu telefono com frequência, não tenho mais o que fazer. Se não telefono, que belo amigo eu sou!

 

Se eu ajudo os outros, sou um carente disfarçado. Se não ajudo, inveterado egoísta eu sou.

 

Se eu publico muitos livros, sou arrivista. Se não publico, improdutivo eu sou.

 

Se eu não entro em briga, sou covarde. Se eu entro, implicante é o que sou.

 

Se eu perdôo fácil, sou bobalhão. Se não perdoo de cara, cruel, muito cruel eu sou.

 

Se eu mudo de opinião, sou inconstante. Se eu a mantenho custe o que custar, doa a quem doer, cabeça-dura eu sou.

 

Se eu entro no grupo, sou influenciável. Se não entro, anti-social eu sou.

 

Se eu estou rindo à toa, sou idiota. Se me mantenho sério, também idiota eu sou.

 

Se eu digo que vou, e no final não vou, sou preguiçoso ou sem palavra. Se eu digo que não vou, mas depois eu vou, além de não ter palavra maluco eu sou.

 

Se eu quero tudo verificado, catalogado, arquivado, sou obsessivo. Se tanto faz, sou relaxado.

 

E assim as coisas se desenrolam e me enrolam. Minha decisão te machuca e minha abstenção te aborrece; meu aperto de mão ou é frouxo à beça ou violento demais; quando chego atrasado é terrível, se chego com antecedência, é mania de perfeição... e se me torno pontual, não fiz mais do que a minha obrigação.

 

Voltado para o futuro, sou um sonhador. Voltado para o passado, um nostálgico incorrigível. Preso ao presente, superficial eu sou. Resta-me sair do tempo, e então serei o perfeito alienado!

 

Os juízes estão atentos ao menor gesto, à palavra que deixo escapar, à que não deixo, ao movimento do olhar, ao tremor das mãos. Sou punido por ser e por não ser.

 

Eterno réu, não mereço o céu, o inferno me despreza, o purgatório já me expulsou.

 

Preciso, com este texto, denunciar os meus juízes. O que fará de mim um infrator contumaz.

 

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.

 

Website: http://www.perisse.com.br/

 

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Comentários   

0 #12 RE: O réu eternotelma fazzolari 20-12-2017 11:52
[É ISSO, SE FAZEMOS MUITO, EXAGERADOS SOMOS E SE NÃO FAZEMOS PREGUIÇOSOS SOMOS
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0 #11 O meu sentimentoTania 18-02-2010 21:53
Texto incrível que define exatamente o sentimento que temos todos os dias!
Tudo está à mercê dos olhos e dos julgamentos alheios.

Sensacional, Gabriel!
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0 #10 Edna Maria Ferreira da Silva 13-11-2009 13:09
Dinâmica, coerente, a crônia é uma análise filosófica do ser humano.
Parabéns Gabriel!
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0 #9 O \"Si MesmoAmarillys 03-11-2009 13:01
Verdade verdadeira. O que vale é "o que o meu coração me diz", se tiver eu a consciência da fala da minha "Alma".Meus parabéns pelo texto , que nos faz transcender às diferenças, defendendo até ao fim o direito de cada um ser como "está" no momento, mesmo discordando em tuto dela.
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0 #8 eterno reupaulo sergio ienne 18-10-2009 19:45
.Esse texto e muito bom mesmo.ele explica a realidade de como os homens sao julgados hoje em dia ,indiferente de como nos comportamos sempre seremos julgados negativamente.
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0 #7 SublimeTarantini Freire 13-10-2009 06:39
Poucos sabem colocar filosofia em poesia...
Ótimo "texto"... na verdade está para além disso...
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0 #6 Karla Genini 09-10-2009 07:31
Mais que filosofia,
leitura do ser,
de tudo que eu já li
esse foi o texto com o qual eu mais me identifiquei.
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0 #5 o reu eternopaulo sergio ienne 08-09-2009 19:02
gostei muito deste artig e´,bem o que sentimos hoje.A menos se vc tiver medo da vida

ps:estou precisando de ideias para divulgar o trabalho do correio p/pessoas sem acesso a internet.
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0 #4 Resignaçãojor 03-09-2009 16:51
Abúlico.Que,ou aquele que não tem,ou quase não tem vontade.
Crônica teatral criativa.
Imaginação criativa,verdade de fato.Filosofia.
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+1 #3 puniçõestelma fazzolari 01-09-2009 15:28
VIVEMOS DE FATO, COMO RÉUS
O TEMPO INTEIRO, MAS NÃO PODEMOS
NOS ESQUECER QUE ALGUNS JUÍZES
NÃO DÃO A SENTENÇA FINAL, FICANDO AINDA PARA NÓS O NOSSO PRÓPRIO JULGAMENTO, AINDA BEM NÃO?
ABRAÇOS A ESSE CRONISTA MARAVILHOSO, QUE COLOCOU MUITO BEM COMO SOMOS OPRIMIDOS ATÉ POR NÓS MESMOS.
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