Correio da Cidadania

Atrelados a empreiteiras, governos seguem ignorando direito à moradia

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Na semana passada, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) iniciaram uma jornada de protestos diante da casa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no centro de São Bernardo do Campo. Na ocasião, integrantes do movimento se acorrentaram diante da residência, recebendo a companhia de outro companheiro a cada dia passado sem negociações. Começando com três acorrentados, o número se elevou a oito até a visita de um assessor da presidência (em 13/07).

 

O movimento exige a desapropriação de diversos terrenos, a regularização de cerca de 2000 famílias do acampamento Anita Garibaldi, maior celeridade na resolução da situação do Acampamento Carlos Lamarca, entre outras questões. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o dirigente Guilherme Boulos afirmou não ter restado alternativa diferente ao movimento, ignorado em suas reivindicações e sofrendo despejos freqüentemente violentos, em franco conluio do poder público com a especulação imobiliária.

 

Destacando o fato de muitas famílias estarem há quase 10 anos esperando pelo acesso à moradia, Boulos lamenta o fato de o movimento ser duramente reprimido quando busca somente a aplicação da função social da terra e do direito constitucional a todos garantido da casa própria. Talvez o fato, para ficar em um exemplo, de o prefeito paulistano Gilberto Kassab ter recebido das empreiteiras 12 milhões dos 27 milhões de reais gastos em sua campanha seja explicativo.

 

Com a força do capital especulador e financiador de campanhas, ele não hesita em dizer que o programa Minha Casa, Minha Vida lançado pelo governo "não tem a menor condição de solucionar o déficit habitacional no país", uma vez que, além da desequilibrada destinação de subsídios, não enfrenta a questão das desapropriações e os interesses das empreiteiras e especuladores da terra.

 

Correio da Cidadania: O que levou os integrantes do movimento a chegarem a tal ponto em seus protestos, acorrentando-se diante da residência do presidente?

 

Guilherme Boulos: O que levou aos acorrentamentos foi o esgotamento das outras possibilidades de mediação. O governo federal estabeleceu uma série de compromissos com o MTST, como a construção de casas e viabilização de empreendimentos que atendam à demanda do movimento. E desde alguns anos, pelo menos 2005, quando esses compromissos começaram a ser estabelecidos, não vêm sendo cumpridos.

 

O que na verdade tem acontecido, ao contrário de empreendimentos de construção habitacional, são despejos. Estamos com problemas concretos de despejo na região de Sumaré, previsto para daqui a duas semanas, sendo que a localidade abriga 4000 pessoas; existem ainda casos de famílias que esperam há anos por acordos em situação precária; e o programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ lançado pelo governo tampouco sinalizou que irá incluir essas famílias mais necessitadas e que esperam há muito tempo.

 

Por todo esse conjunto de fatores que fomos protestar diante da casa do presidente.

 

CC: E são aproximadamente quantas famílias envolvidas em todo o estado de São Paulo à espera de uma moradia?

 

GB: Somente no estado de São Paulo calculamos quase 20.000 famílias vinculadas ao movimento. Aqueles que estão na casa do Lula o fazem em nome de todo esse contingente.

 

CC: Há quanto tempo, em médias, essas famílias estão esperando pela concessão de suas moradias?

 

GB: Isso depende de caso a caso. Há famílias que esperam há oito, nove, dez anos. E há também aquelas que não se organizam nos movimentos sociais e só se cadastram nos programas do governo. Esses casos podem chegar a até 20 anos.

 

No movimento muitas famílias esperam há cerca de 8 anos, como disse, e ainda não foram contempladas.

 

CC: Qual a rotina dos acampamentos, em que condições passam os dias e meses as pessoas alojados com o movimento?

 

GB: As condições dos acampamentos são extremamente precárias no sentido da infra-estrutura urbana. Na medida em que há uma ausência do poder público para suprir as necessidades básicas das famílias, as condições são muito precárias em termos de saneamento, alimentação, enfim, todas as dificuldades que existem não só nas ocupações do movimento, mas também no conjunto de todas as grandes periferias urbanas.

 

No entanto, quando o movimento social está presente, de alguma forma essa situação é contrabalanceada pelo trabalho coletivo, solidariedade e ajuda mútua que existe entre as pessoas que fazem parte desse processo de luta.

 

As condições permanecem sendo precárias, mas há uma solidariedade maior que torna a sobrevivência possível.

 

CC: Quais têm sido as posturas do governo na condução do processo e trato dos militantes?

 

GB: Até hoje (segunda, 13/07) não havia sido aberta negociação. Exatamente hoje tivemos uma reunião com um assessor da presidência, que veio a São Paulo dialogar com o movimento, sem ainda uma sinalização clara de proposta governamental para atender às demandas e reivindicações apresentadas por nós. De toda forma, abriu-se um andamento da negociação, a fim de solucionar nosso problema.

 

CC: O que, em sua opinião, impede o governo de regularizar as moradias e posses de terrenos em áreas há muito tempo ocupadas e que muitas vezes não estão cumprindo nenhuma função social e/ou econômica?

 

GB: Na nossa avaliação a força do capital imobiliário, a importância da indústria da construção civil, a importância dos especuladores imobiliários e também seu peso político, inclusive com bancadas parlamentares e financiamentos de campanha, são todos fatores decisivos para que tais setores mantenham seus privilégios, muitas vezes de forma ilegal.

 

A Constituição assegura a função social da propriedade. Mas a gente vê grandes latifúndios urbanos abandonados há anos, servindo apenas à especulação, sem serem desapropriados e sem que haja posturas do governo, em todas as suas instâncias, no sentido de fazer valer alguma função social da terra.

 

E quando o movimento busca a aplicação dessa função social da terra em muitas vezes é tratado com repressão.

 

CC: E essa repressão por você mencionada tem sido exagerada?

 

GB: Considerando só o MTST, temos sofrido nos últimos anos – além das formas mais tradicionais de repressão, como violência policial direta, protestos judiciais e criminais contra dirigentes do movimento, despejos arbitrários – ações civis de interdito proibitório, que impedem o movimento de se manifestar em prefeituras, o que também ocorre com o movimento sindical no Brasil, com interditos que impedem greves e piquetes em determinadas fábricas e empresas.

 

Portanto, além da repressão de sempre, estamos tendo nosso direito de manifestação tolhido.

 

CC: Você teria em mente situações que tenham deixado claro algum tipo de conluio entre iniciativa privada e poder público em lutas do movimento, como concessão de terrenos, despejos?

 

GB: Ah, sim, são casos muito freqüentes. Podemos dar vários exemplos. Houve um despejo em São Paulo no qual as famílias receberam indenizações pagas por uma incorporadora que tinha interesse no terreno vizinho, pois desenvolvia um empreendimento ao lado da ocupação. O poder público se aliou à empreiteira, interessado em valorizar o terreno em construção, e deu uma migalha para as famílias saírem.

 

Em outra oportunidade, ocupamos o terreno de uma grande multinacional, financiadora de campanha, e na época tanto parlamentares como o governador Geraldo Alckmin se posicionaram de maneira truculenta em favor do despejo, defendendo os interesses da empresa.

 

Enfim, eu poderia aqui recorrer a uma série de exemplos. É muito frequente essa promiscuidade entre o capital privado do setor imobiliário e o poder público no ataque aos direitos das famílias sem teto.

 

CC: Acredita que o pacote habitacional lançado por Lula, tão elogiado por teoricamente se voltar aos brasileiros de menor renda, surtirá algum efeito real nessa camada de pessoas que ainda não conseguem acessar sua moradia própria? Acredita que ajudará a reduzir o déficit habitacional ao menos em algumas metrópoles?

 

GB: Esse pacote é muito limitado. Primeiro porque apenas 40% das unidades habitacionais previstas no programa são voltadas às famílias que ganham menos de três salários mínimos, que correspondem a praticamente 90% do déficit habitacional.

 

Em termos de subsídio, a proporção é ainda menor: apenas 20% dos recursos do programa serão voltados a essa camada. O programa está voltado para atender a apenas 14% do déficit habitacional do país. Esse problema é muito mais grave no Brasil.

 

Claro que a existência de mais subsídio para as classes populares tem um significado, mas a maneira de condução do programa, dando centralidade às empreiteiras como agentes fundamentais, e a taxa de renda que acabará pegando pela destinação de recursos fazem com que esse programa não tenha a menor condição de solucionar o déficit habitacional no país, principalmente nas grandes metrópoles, onde o valor da terra, muito mais alto por conta da especulação imobiliária, exigiria uma política de desapropriações.

 

E o ‘Minha Casa Minha Vida’ não prevê desapropriação, apenas negociações e compras de terra. Sem o instrumento das desapropriações, da troca de terra por dívida, que possuem centralidade no tema da função social da propriedade, não se resolve o déficit habitacional do Brasil.

 

CC: E como você analisa as perspectivas futuras do movimento no atual contexto de lutas dos movimentos sociais no país?

 

GB: Diante da crise econômica internacional, da carência cada vez maior de condições mínimas de vida digna à maioria da população brasileira, latino-americana, estamos diante de um grande desafio aos movimentos populares, e nisso o MTST tem sua responsabilidade, que é desenvolver cada vez mais o trabalho de base e organizar o povo que está desamparado e sem perspectiva nas periferias urbanas, fazendo grandes lutas e mobilizações para mudar essa realidade social.

 

A visão do MTST é a de que a sociedade capitalista é predatória e que nossos problemas não poderão ser resolvidos nos marcos desta sociedade. A luta nossa e dos movimentos populares, conseqüente com uma perspectiva de libertação, se confunde com as batalhadas do conjunto da classe trabalhadora por uma nova sociedade.

 

Esse é o desafio que nos colocamos em todas as nossas atividades de organização popular, mobilização, luta e pressão contra os governos.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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