Correio da Cidadania

A ausência da mediação no Afeganistão

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Independentemente do poderio de um país, a tomada de decisão de um governante nem sempre é a melhor medida, mas a possível, por situar-se em um contexto em que se digladiam diária e arduamente diferentes burocracias. Assim, na execução da política externa, há constantes disputas entre militares e diplomatas, por exemplo.

 

A tática de uma militarização maior no Afeganistão é decorrente deste embate de atores internos do governo norte-americano que, por seu turno, são influenciados por outros tais como corporações multinacionais – vinculadas ao setor petrolífero e ao armamentista - e, em menor escala organizações não governamentais – conectadas a direitos humanos, ao meio ambiente, à defesa das mulheres e de minorias étnicas ou religiosas.

 

O caminho viável, de acordo com o Departamento de Defesa, para se chegar à estabilidade naquele país é o aumento temporário de tropas, a fim de desestimular a resistência da guerrilha; depois disso, haveria sinais para se entabularem negociações com os líderes locais e a ampliação, desta vez, seria do número de diplomatas, não só norte-americanos, mas também de países com os quais o Afeganistão compartilha fronteiras.

 

Conquanto já esteja traçado o roteiro da Casa Branca, falta-lhe um elemento para que a execução pudesse obter um desenlace satisfatório: interlocutores moderados do lado afegão, transcendentes ao grupo do presidente Hamid Karzai.

 

Há muito tempo isolado politicamente, ele é, na prática, considerado por observadores internacionais como apenas o prefeito da capital Cabul, com poderes no máximo até seus arredores. Na melhor das hipóteses, estima-se que o governo exerça a sua autonomia administrativa em cerca de um terço do território tão-somente, mas mesmo assim de maneira fragmentada.

 

Karzai retruca ao afirmar o caráter histórico da descentralização política em solo afegão. Nesse sentido, os líderes tribais sempre tiveram bastante poder e não seria fácil conduzir o processo de centralização, ainda que eventualmente sob aspecto federativo. Um exemplo disso seria a dificuldade de organização de um poder judiciário laico e presente efetivamente em todo o país, indo de encontro a antiqüíssimos costumes.

 

Enquanto isso, avalia-se o Afeganistão como um território em que não é possível reprimir atividades ilegais, em especial o tráfico do ópio – o país seria supostamente responsável por quase 90% da produção mundial do produto. Para muitos agricultores, o cultivo da papoula é a única fonte satisfatória de subsistência, por ser de fácil comércio e de difícil repressão, em decorrência da postura cotidiana das forças policiais: omissão ou corrupção.

 

Atualmente, a polícia afegã conta com cerca de 80 mil efetivos, número similar aos das forças armadas, porém ainda visto como insuficiente para enfrentar de modo regular a guerrilha talibã. Eis uma das justificativas para o aumento de tropas em solo afegão. Registre-se que há quase 70 mil combatentes agregados ora sob estandarte norte-americano, ora ‘otaniano’.

 

Quanto ao aparato policial, não obstante o seu tamanho, lamenta-se a sua qualidade operacional por causa da forte desconfiança de que constantemente membros do Talibã infiltrem-se nele, sabotem o seu trabalho e, por conseguinte, desmoralizem a sua atuação. Além do mais, é possível que haja o desvio de armamento para grupos fundamentalistas ou a venda para criminosos.

 

A dificuldade para encontrar mediadores ao longo de todo o país procede da sua eliminação gradativa do processo político nas últimas quatro décadas por meio de rupturas como a mudança de monarquia para república em 1973 ou a ocupação soviética do país no final de 1979, por exemplo, ou ainda a queda do regime comunista em 1992, substituído por um governo islâmico.

 

Em todos os momentos conturbados, muitos líderes locais, quando não assassinados por segmentos radicais, tiveram de refugiar-se no Irã e no Paquistão, com o objetivo de preservar a sua vida e a de suas famílias. Outros mais bem aquinhoados em termos de renda puderam mudar-se definitivamente para a Europa.

 

Assim, na arena política afegã, devido ao violento contexto dos últimos anos, torna-se difícil identificar lideranças mais diplomáticas que belicosas e, portanto, mais propensas a um encaminhamento pacífico com vistas a solucionar a disputa de poder no país, sem a presença de tropas estrangeiras.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

 

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