Correio da Cidadania

Marx é um humanista?

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Depende do que se atribua a esse multivalente vocábulo. Se por humanismo se entender visão de mundo que nega pontos de vista naturais, soberania de vida espiritual sobre a matéria, Marx é opositor ferrenho. Interpreta que os mais elevados anseios ligam-se à base natural e à terrena infra-estrutura social. Ao se entender humanismo como pensamento que cria o homem-objeto-gladiador oposto às tentativas de degradá-lo por outros objetivos, é Marx um genuíno humanista. Avalia em ‘O Capital’ o que é humano: "...forma social superior, tendo por princípio fundamental o desenvolvimento livre e integral de cada indivíduo..." (Marx, Karl: O Capital. Civilização Brasileira, Rio, livro I p. 688).

 

Pode-se encontrar expressões semelhantes de avaliações suas, mas esta se basta. Valor positivo é pleno desenvolvimento de riquezas humanas. Negativo é o que limita e compartimenta o livre crescimento das aptidões. Marx parte do ideal humanitário. Um ou outro quiçá se surpreenda num empedernido materialismo que suponha o interesse aferido na questão do estômago. Em realidade, há o raciocínio clássico calcado no idealismo alemão, oriundo da ética aristotélica.

 

Aristóteles objetivou melhor desenvolver aptidões da natureza humana. Nessa plenitude residia a verdadeira felicidade. Seu tipo ético ideal é o senhor amplamente culto, afeito a encargos práticos, receptivo a valores estéticos e familiarizado com o mundo do pensamento teórico.

 

Para o neo-humanismo e o romantismo alemão o ideal ganha forma: não era implantar novo modelo genérico. Era maximizar a individualidade singular. Sua concepção de vida, no entanto, era aristocrata, ligava-se a uma perspectiva de classe historicamente dada.

 

Aristóteles voltava-se a atenienses bem situados, não dedicando seu pensamento a escravos ou massa de marinheiros, camponeses, artesãos. Nos tempos modernos os pregadores do livre humanismo focam grupos detentores de privilégios de boa formação e bom nível de vida.

 

O humanismo de Marx é radicalmente democrático. Se argumenta em favor de pleno e livre desenvolvimento individual, pensa no segmento social econômico de modo espiritual despojado. Descreve as condições reinantes e denuncia as forças que decepam e deturpam a individualidade do trabalhador. Indigna-se violentamente à luz da formação humanista.

 

Pode-se desperceber seu motivo, porque Marx (por princípio) recusa revestir seus pensamentos com a retórica professoral idealista. Segue Hegel: a filosofia deve evitar parecer edificante. Se parecer um cínico realista - assim tem sido apresentado por escritores queixosos de sua falta de sentimentos favoráveis a valores éticos - é porque a não atenção deles ao ofendido idealismo baseia os irados e obstinados ataques.

 

O novo homem

 

O proletário, o destituído trabalhador assalariado, traz curiosa dubiedade à história da filosofia de Marx. É indefesa vítima da desumana ordem social que lhe explora a força de trabalho, a fim de criar contínuo acréscimo de lucros. Sua posição é anômala para quem esposa a idéia do livre desenvolvimento humano. Justamente por indigência e alienação predispõe favoravelmente o novo e desenvolto tipo humano. Melhor se entenda com Marx e Engels, n’ O manifesto comunista de 1848, que Marx reconhece expressão de suas intenções.

 

Descrevem o proletário como um apartado da sociedade burguesa, destituído dos privilégios que são o conteúdo da vida desta, que tem ação social, enquanto o proletário fica de fora; nada mais é que um elementar humano. Não respeita os valores oficiais da burguesia, seus conceitos de religião, moral e patriotismo. Para o proletário são somente preconceitos burgueses, por trás dos quais ocultam seus interesses.

 

A classe dominante o excluiu de participar dos recursos materiais e das tradições espirituais com a sensatez de analisar as coisas com clareza. Liberto de herdada bagagem conceitual, o proletário detém a capacidade de edificar nova cultura em nova ordem social.

 

Marx praticamente não encontrou o trabalhador destituído de tradição e ilusões nos crescentes distritos industriais da Europa. Esta é uma construção literária que não tem origem em Manchester ou Lyon, mas em radicais filósofos culturais. Quando no Manifesto se permite ao proletário sem tradições ver sob o olhar do estranho a civilização burguesa, torna-se-o representante do homem natural, sem mensagem no mundo sobrecarregado de tradições. Nele Marx deposita esperanças de futuro, ao desmoronar a última forma de domínio classista. Não foi o único a acreditar na evolução dos trabalhadores. A filosofia social de Comte propõe que se construa uma sociedade cientificamente organizada. Os sonhos da época das revoluções pertenciam (Comte) a uma metafísica pré-científica, assim como fantasias de reacionários à restauração do antigo regime e a abstratos ideais de liberdade dos liberais. Era questão candente da época: como o crescente operariado poderia melhor ser inserido na sociedade industrial que se configurava? A resposta rezava: tornando-o participante nos resultados da moderna ciência e na forma de pensar que fundamenta suas grandes conquistas. Assim se faz contraponto à tendência de românticas aventuras que resultariam em negativas surpresas.

 

Quando as abstrações da filosofia iluminista atingiram os moradores dos subúrbios, alastraram-se incêndios revolucionários. Quando os sóbrios métodos de laboratórios e oficinas influíram sobre o pensamento das massas, elas aprenderam a distinguir entre bem intencionadas reformas e projetos futuristas vagos. A crise social passa a poder ser resolvida, em época de maior organicidade social.

 

Comte e Marx partem da alienação dos trabalhadores na sociedade estabelecida. O que os diferencia é: a) Comte quer superar o antagonismo de classes apoiado na científica engenharia social e na planejada formação popular de princípios positivistas; b) Marx quer tornar os trabalhadores conscientes da sua condição de educarem-se para a sociedade que sucederá a burguesa. Só aí se realizará o sonho humanista de desenvolvimento democrático pleno.

 

Frank Svensson, professor aposentado da Universidade de Brasília, membro do CC do PCB.

 

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