Correio da Cidadania

Esquecer, lembrar, amar: Hiroshima Meu Amor

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A verdadeira tristeza é a de não mais poder sofrer daquilo de que já tanto se sofreu. (Pierre Nora, Les Lieux de La mémoire, p. 43).

 

À Maria: "Você também viveu o que eu vivi".

 

1959. Ao participar de um filme sobre a paz em Hiroshima, uma atriz francesa (Emanuelle Riva) tem um caso de uma noite com um arquiteto japonês casado (Eiji Okada). Ela lhe revela sua história, seu primeiro amor, durante a guerra, com um soldado alemão, em Nevers, na França. Eles se apaixonam profundamente e ele pede que ela fique em Hiroshima.

 

Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, dir. Alain Resnais, França, 1959). O diálogo de abertura:

 

Ele: Você não viu nada em Hiroshima. Nada!

 

Ela: Eu vi tudo. Inclusive o hospital. Tenho certeza! O hospital existe em Hiroshima. Como eu poderia evitar vê-lo?

 

Ele: Você não viu um hospital em Hiroshima. Você não viu nada em Hiroshima.

 

Ela: Quatro vezes no museu...

 

Ele: Que museu em Hiroshima?

 

Ela não estava em Hiroshima quando do bombardeio, por isso não poderia ter lembrança alguma disso. Na verdade, após algum tempo, já não sabemos mais se ela está em Hiroshima ou Nevers, e inventou a história toda. Os flashbacks do filme articulam presente e passado de maneira única: não há tempo presente que não esteja impregnado de passado, assim como não há percepção que não esteja impregnada de lembranças – Henri Bergson, aqui, via Alain Resnais e Marguerite Duras.

 

O filme todo separa e une simultaneamente vários planos – as imagens de Resnais e as palavras de Duras, Hiroshima e Nevers como se uma única cidade imaginária, as lembranças dela e as dele, passado e presente, o amante alemão e o japonês, as dores subjetivas e as da tragédia nuclear, guerra e amor.

 

Não há exatamente como separar ficção e realidade, mas também não há como uni-los total e definitivamente. Os flashbacks só oferecem ilusões, nada é certo, tudo é etéreo e improvável. A insistência dela nas suas lembranças de Nevers e a escolha dele – ele diz: "Foi lá (em Nevers), parece que compreendi, que fracassei... te perder... e lá arrisquei jamais te reencontrar". Ou então: "Foi lá, parece que compreendi, que tu deves ter começado a ser o que hoje ainda és". O filme não opta por uma ou outra resposta; em vez, oferece as duas como possibilidades abertas e camadas interpostas de compreensão e entendimento do que foi que se passou em Nevers/Hiroshima.

 

O corpo do amante japonês faz ela se lembrar do corpo de seu primeiro amor em Nevers – sua morte, o corpo na cama como o corpo baleado estendido no chão. O foco na mão do japonês, a imagem da mão do seu amor no passado, a mesma posição, presente e passado se mesclam – do prazer extremo da pele à dor lancinante da pele –, a pele, as mãos e os sentidos, a memória dos sentidos a ser cultivada, o suor brilhante dos corpos dos amantes e os semblantes desfigurados das vítimas da bomba, tudo é olvido, a bomba acabou com a vida em Hiroshima. Ele encarna o esquecido da história: quando em batalha, sua família em Hiroshima, a bomba explodiu. Ele agora vive com a culpa de ter sobrevivido, o anseio erótico pelo qual busca alívio jamais será plenamente satisfeito. A memória do corpo, assim, se articula com a impossibilidade de se falar de Hiroshima.

 

A articulação entre memória e esquecimento:

 

Ela: Contra quem a ira dessas cidades? A ira das cidades, conscientemente ou não, contra a desigualdade imposta em princípio por certos povos contra outros povos, contra a desigualdade imposta por certas raças contra outras raças, contra a desigualdade imposta por certas classes contra outras classes. Ouça! Como você eu conheço o esquecimento.

 

Ele: Não. Você não conhece o esquecimento.

 

Ela: Como você, eu tenho memória, eu conheço o esquecimento.

 

Ele: Não. Você não tem memória.

 

Ela: Como você. Eu também tentei lutar com todas as forças contra o esquecimento. Como você, eu esqueci. Como você, eu desejei ter a inconsolável memória. Uma memória de sombras e pedras... Eu lutei decidida, com todas as forças, todos os dias, contra o horror de não mais entender o porquê de se lembrar. Como você... eu esqueci. Por que negar a evidente necessidade da memória? Ouça. Eu sei que vai acontecer de novo.

 

Ela não quer se esquecer; identifica-se com as dores muito maiores das vítimas da bomba, ela se lembra a todo instante que não pode esquecer o que aconteceu em Nevers – é ela quem diz a ele: eu também vivi o que você viveu. E ele só quer poder ser lembrado... Alain Resnais: "Nenhuma dor é mais que outra. A dor é incomensurável".

 

Ela não abandona Nevers. O medo do esquecimento a impede de viver um novo amor – ela se lembra do que sofreu... A imersão na memória do outro pode dar algum alívio? Gilles Deleuze: "Há dois personagens, mas cada um tem sua própria memória estrangeira ao outro. Nada mais há de comum. É como se fossem duas regiões de passado incomensuráveis, Hiroshima, Nevers. E ainda que o japonês recuse à mulher entrar na região dele ("J’ai tout vu... tout... – Tu n’as rien vu à Hiroshima, rien..."), ela atrai para si o japonês voluntário e aquiescente, até certo ponto. Não seria o caso, para cada um deles, de uma maneira de se esquecer da própria memória e de construírem uma memória a dois, como se a memória agora se tornasse mundo e se separasse de suas pessoas?" (Cinéma 2: L’Image-Temps, p. 154).

 

O amor – é preciso lembrar, para poder amar, é preciso esquecer, para poder lembrar. E isso em dois planos: a cidade que se reconstrói e a mulher que tenta se reencontrar. Já no título, o filme articula esses dois planos de memória e de esquecimento: o erotismo e o encontro com a cidade.

 

Ela registra o esquecimento em seu corpo ("Tenho medo de ter esquecido tanto amor"), tenta nele imprimir – a não mais se apagar – o amor. E, no entanto, no êxtase e nas reminiscências que descobre com seu amante japonês – seu corpo que lembra o do soldado alemão – ela reencontra o esquecimento do amor, a inexorabilidade do tempo e o movimento para o futuro – ela, Nevers, o passado resistente, inevitável, do qual somos todos herdeiros e, por isso, diante do qual somos em certa medida impotentes; ele, Hiroshima, a lembrança de algo que pode não ter sido, a possibilidade de um novo grande amor, sem o qual as lembranças do passado não fazem sentido algum.

 

Cordiais saudações.

 

** *

 

LEITURA: Belo texto sobre Hiroshima Meu Amor, escrito em português, ao qual este deve muito: <http://www.preac.unicamp.br/memoria/textos/Alessandra%20Brum%20-%20completo.pdf>. Acessado em 31/03/2009.

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de Filosofia na PUC-SP e com Monsueto também se pergunta: "Pra que rimar amor e dor?".

 

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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Comentários   

0 #2 je t\'oublieraiLaura 09-04-2009 20:37
carissimo! Assisti ao filme em sua homenagem e fiquei realmente comovidíssima. E, pra variar, seu artigo me faz pensar. Quando ela diz Hiroshima é seu nome e ele responde Nevers é o seu, ambas as personagens deixam de ser elas próprias (é preciso dizer, não tinham nome, quem eram?) ou pelo menos da maneira como as conhecemos pela narrativa entrecortada do filme. Nesse momento, perdem-se na imensidão da História e abandonam o universo das dores íntimas. Se, por um lado, memória e esquecimento dependem de um sujeito que vive experiências e as elabora a sua maneira (ou não), fazendo delas o tecido de sua subjetividade, por outro, parece que Resnais, numa perspectiva menos intimista, ao final, insere esses dramas individuais numa esfera mais ampla, na dor maior do mundo... beijo grande
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0 #1 Maria Lúcia 09-04-2009 14:21
Adorei o seu texto, fiquei com vontade de assistir ao filme. Me parece interessante o jeito em que se recriam os lugares e os personagens, os contrastes da guerra e do amor, da destruição e do recomeço. Parece até um pouco ingênuo, mas não é a obra se abre para um grande leque de possíveis leituras. Parabéns pela coluna.
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