Correio da Cidadania

Crise exige enfoque transformador para papel do BID

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Em alguns dias, será realizada uma nova assembléia do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Não será apenas mais um encontro, já que esta instituição se presta a cumprir cinqüenta anos. O evento se sediará em Medellín (Colômbia), de 27 a 31 de março, e contará com a presença de ministros da economia e presidentes de bancos centrais, provenientes de seus 48 países membros. Além do mais, se celebrará a 24ª reunião da Corporação Interamericana de Investimentos, o órgão paralelo ao BID, dedicado a apoiar pequenas e médias empresas, assim como o encontro regular do Fundo Multilateral de Investimentos, dirigido às microempresas. Como se fosse pouco, neste encontro se formalizará a entrada da China como novo membro não rotativo.

 

O BID, concebido a partir de uma iniciativa da OEA, atualmente opera em 26 países, com uma sede central em Washington, representações em cada país latino-americano e escritórios especializados em Buenos Aires (orientados à integração regional), Paris e Tóquio. O banco conta com cerca de 2000 empregados e no último ano concedeu empréstimos e doações de 10 bilhões de dólares. O Brasil é um dos membros fundadores do banco e sua participação de voto corresponde a 10,84%; as principais áreas em que recebe assistência são as de energia e transporte.

 

Ao longo desse meio século de existência, o BID sofreu importantes modificações. Se bem foi lançado como um banco regional das Américas, sua composição se diversificou e agora engloba muitos países europeus e outras nações industrializadas. Durante muito tempo seus empréstimos e apoios estavam restritos aos empreendimentos governamentais, até que sob a onda das mudanças neoliberais seguiu os passos do Banco Mundial e começou a financiar projetos escolhidos a dedo, como estradas ou edifícios, e a se envolver com reformas setoriais, imiscuindo-se nas políticas nacionais em áreas chaves como saúde, educação ou meio ambiente. Finalmente, sob sua guarda se mantém uma intrincada rede de consultores e empresas consultoras, muitas delas provenientes dos países industrializados que viravam membros do banco.

 

Inclusive, do ponto de vista convencional, o BID em muitas ocasiões ficou restrito a um papel secundário de apoio às medidas empreendidas pelo Banco Mundial. Também foi ofuscado por organizações como a CEPAL em um rol de usina de informações e análises técnicas. Algumas de suas propostas conceituais foram tão fundamentalistas que até os governos de turno decidiram sepultá-las. Isso ocorreu, por exemplo, em fins dos anos 90, quando suas economias ressuscitaram o determinismo geográfico do desenvolvimento latino-americano, postulando um inevitável atraso para os países tropicais, ricos em recursos naturais. Tal idéia implicava que um país como o Brasil estava quase condenado ao subdesenvolvimento pela confluência de sua riqueza em recursos, que por sua vez impedia a obtenção de postos de trabalho para a população.

 

Ao longo dessas cinco décadas, o banco esteve por trás de muitos empreendimentos polêmicos, contribuiu para sustentar as reformas de mercado em muitos países e sua efetividade é motivo de discussão. Um significativo conjunto de organizações sociais das Américas, frente a este aniversário, sustenta que "boa parte dos projetos impulsionados pelo BID foram amplamente questionados por suas conseqüências sociais, políticas, econômicas e ambientais", devido a fatores como o modelo de desenvolvimento proposto, deficientes processos de avaliação dos custos e benefícios de seus projetos, ambíguas medidas de salvaguarda e amortização, e limitada transparência. Por tais razões, essas organizações lançaram a campanha "BID: 50 anos financiando a desigualdade", onde se alerta sobre o passado do banco e se promove uma reflexão sobre alternativas futuras.

 

Nos últimos anos o BID ficou num plano secundário, como um dos emprestadores mais importantes do continente. A bonança econômica gerada pela expansão exportadora latino-americana desencadeou um processo que fez que outras instituições financeiras regionais, como a Corporação Andina de Fomento ou o brasileiro Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), exigissem um papel mais importante. Inclusive avançou-se na criação de um Banco do Sul exclusivamente sul-americano, com o qual se evitariam os problemas do BID, onde EUA e outras nações industrializadas possuem um peso decisivo.

 

Porém, a crise econômica global fez com que vários países retornassem a Washington, negociando novos projetos, tanto com o BID como com o Banco Mundial, inclusive voltando a iniciar conversações com o FMI. Os problemas do acesso ao crédito internacional e a dura queda das exportações latino-americanas fez com que muitos esperassem conseguir nesses guichês fundos frescos para oxigenar as economias nacionais. Será necessário observar detidamente esse processo, já que o BID também enfrenta dificuldades econômicas, com perdas estimadas em quase 2 bilhões de dólares, que teriam se originado nos controles ineficazes de suas carteiras de investimento.

 

Apesar disso, seu presidente, o colombiano Luis Alberto Moreno, afirma que em 2009 poderão se aprovar empréstimos que alcançariam uma cifra recorde de 18 bilhões de dólares (dois terços se obteriam do capital ordinário e até 6 bilhões de dólares de um fundo de emergências). As fontes para nutrir tais fundos e a forma de conceder os empréstimos se discutirão na assembléia da Colômbia.

 

As urgências da atual crise não podem nos fazer esquecer que justamente essa situação global indica que se requer outro tipo de instituições de assistência financeira. Isso é especialmente certo na América Latina, tanto devido a fatos como as tentativas de vários governos de ganhar autonomia frente às instituições financeiras fincadas em Washington, como à crescente convicção da fragilidade de uma estratégia de desenvolvimento baseada essencialmente em exportar recursos naturais.

 

Uma resposta indubitavelmente inadequada seria o BID promover, e os governos aceitarem, servir-se da atual crise econômica como desculpa para manter as mesmas estratégias e os mesmos tipos de projeto. A postura deve ser a contrária: a atual situação global deixa claro que é necessário outro estilo de desenvolvimento, e esses requerem outros mecanismos para avaliar, outorgar e monitorar a assistência financeira ao desenvolvimento. As mudanças em alguns países também operam nesse sentido. Por exemplo, seria inaceitável que o banco repetisse a mesma aposta na perspectiva empresarial focada no capital e na competitividade, enquanto as novas constituições de Equador e Bolívia colocam em primeiro lugar o "bem-estar". Sob essas novas idéias é necessário um novo banco.

 

Portanto, as mudanças substanciais no banco devem começar por repensar suas metas e áreas de ação prioritárias. Atualmente, o BID persiste nas velhas receitas do crescimento econômico como motor do desenvolvimento, obcecado com a competitividade e onde os espaços sociais e ambientais seriam efeitos secundários que se deixam em mãos de governos para serem eventualmente compensados ou amortizados. Até agora, um número expressivo de seus projetos operou no sentido contrário devido aos seus altos impactos sociais e ambientais, e por seu baixo desempenho em gerar desenvolvimento genuíno. Exemplo disso foi o envolvimento do banco com projetos de infra-estrutura e exportação, como estradas e pontes, em regiões de grande fragilidade ecológica ou de alto impacto social.

 

Além do mais, essas mudanças de orientação política, no banco requerem transformações em aspectos instrumentais. Por exemplo, suas ferramentas de avaliação sócio-ambiental são insuficientes, às vezes inadequadas e até antiquadas. São indispensáveis mecanismos de abordagem multidisciplinares, que possam levar a sério a diversidade cultural e ecológica do continente e se desenvolvam de forma contínua, de maneira a permitir retificações e reorientações de qualquer projeto.

 

O encontro em Medellín é uma boa oportunidade para repensar as necessidades latino-americanas e a forma com que uma instituição financeira como o BID pode contribuir para solucioná-las. As organizações cidadãs estarão ali presentes para recuperar a história do banco e promover novas alternativas. Porém, essa responsabilidade de mudança recai principalmente tanto sobre os diretores do BID como dos próprios governos do continente, e em especial aqueles que se definem como progressistas, como é o caso do Brasil. Por tais razões, a assembléia não pode ser transformada numa simples festa de aniversário, pois é necessário avançar rumo a um novo banco para um novo tempo.

 

Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.

 

Traduzido por Gabriel Brito.

 

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