Correio da Cidadania

Mito e cinema V: Cláusulas contratuais são uma forma de violência?

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Na nossa condição natural, somos todos igualmente livres para fazer o que pudermos para sobreviver, com uma condição: respeitar esse mesmo direito dos outros. Essa condição natural de todos os homens, portanto, nos coloca a todos em estado originário de igualdade: todos temos os mesmos direitos, e o direito mais fundamental é o direito à vida.

 

Mas, se todos são iguais, com os mesmos direitos para fazer o que for possível para sobreviver, isso não acabará em guerra? Não necessariamente, pois a razão também pertence a todos. Não a capacidade de se fazer matemática, mas a capacidade de compreender o outro, a capacidade de ser razoável e de entender o que é de direito meu e o que é de direito do outro. A lei da razão, assim, é mais uma lei da capacidade de ser razoável, mais um senso-comum, do que regras da razão geométrica. Assim como reconheço ser capaz de planejar minhas metas e coordenar minhas ações para atingi-las, também reconheço que outras pessoas podem fazer o mesmo – podem e fazem.

 

No entanto, se eu posso julgar, o outro também pode; se eu tenho razão, outros também a têm – e ninguém a tem. Como evitar o conflito? Deixando que outrem decida: não conseguindo entrar em acordo, podemos deixar a decisão a um árbitro. – Mas eu não concordo com os termos desse pacto! Não há problema, qualquer um pode ficar fora da associação e permanecerá com seus direitos intocados: sua liberdade continua a mesma, seu direito de julgar, de perseguir seus fins, tudo permanece como na sua condição natural. Afinal, o contrato não exige o consentimento unânime: a decisão da maioria basta.

 

Em linhas gerais, essa poderia ser uma descrição de como John Locke pensa a origem das comunidades políticas em relação ao estado de natureza. O estado de natureza existe, assim, ao menos como um tipo de "reserva", onde poderiam se refugiar aqueles que não queiram aderir a uma sociedade civil. O indivíduo pode, certamente, se abster, por exemplo, de votar; pode não concordar com as leis do fisco; nem com as regras de bom comportamento público. Contudo, ele será obrigado a compreender, pelos meios apropriados, a necessidade de pagar seus impostos. Se, noutro exemplo, uma guerra – acontecimento político característico – estourar, as bombas não escolherão suas vítimas unicamente dentre aqueles que deliberadamente consentiram em participar do corpo político. Para bem ou para mal, todo indivíduo vive numa sociedade política: retirar-se dela significa aceitar as leis de outra. Essa situação fundamental é independente do contrato com o qual ele livremente consentiu ou que lhe foi imposto.

 

A formalidade da cláusula de Locke é exposta em toda sua fragilidade pelo filme já mencionado na última coluna, Jeremiah Johnson (dir. Sydney Pollack, EUA, 1972). Ao abandonar a civilização após a guerra com o México, Jeremiah Johnson re-aprende a duras penas as leis da nova realidade em que escolhe viver, que é da montanha: ele aprende a reconhecer os limites dos outros, bem como a caçar e pescar; com seu próprio esforço, conquista seu pedaço de chão, constrói sua casa e começa a viver em paz, na companhia de sua mulher (uma índia, mas essa é outra história) e seu filho adotivo (mais outra...). Mas, parece que não aprendeu o que "Bear Claw" Chris Lapp sempre dizia: não se engana a montanha.

 

Instado a guiar uma expedição oficial do Estado do Colorado a resgatar uma caravana perdida, Jeremiah Johnson quebra as regras da montanha, invadindo um território proibido – ele buscou se isolar, e a civilização foi atrás dele; ele não aceitou as regras, mas as regras lhe foram impostas, e ele nada pôde fazer. E essa foi a lição mais dura: é impossível se isolar; em situações decisivas, a neutralidade é a ruína – aquele que não escolhe um lado, acaba penalizado pelos dois.

 

Ao contar a história do reaprendizado de Jeremiah Johnson, o filme nos dá muito mais do que uma história bem contada. Vários clichês dos westerns tradicionais são apresentados: a amizade que se faz na ação conjunta; o batido tema dos dois parceiros, um velho e mestre, o outro, jovem e aprendiz; o indivíduo e a natureza; tudo isso em bom clima hippie, como mandava a voga da época. Mas não há ingenuidade alguma. Os clichês narrativos servem para desmascarar certa hipocrisia da historiografia oficial: mais do que de heróis, a história dos EUA é feita de muita violência, e, sobretudo, de muitos mitos. O de Jeremiah Johnson era o bom selvagem; o da livre-iniciativa é só mais um deles. O que fica para a próxima coluna.

 

Cordiais saudações.

 

* * *

DICA: Liv Ullmann esteve no Brasil há pouco tempo para lançar sua primeira autobiografia, pela primeira vez traduzida no país: Mutações. Da editora Cosac & Naify. Vale conferir, não só pela musa de Ingmar Bergman, mas principalmente pela delicadeza, da escrita, das histórias. E esperar o lançamento da segunda autobiografia da atriz, Opções (será que ela volta?).

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP, e vai se lamentar até a morte não ter conseguido um autógrafo de Liv Ullmann – cada um com seus mitos...

 

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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Comentários   

0 #1 Maria Guiomar Benuto Frastrone 19-11-2008 08:23
Toda semana aguardando ansiosamente o texto do Prof. Cassiano! A maneira como escreve, no mínimo, impressionante! Um banho de sutileza e conhecimento! Simplesmente fantástico...
Contando os dias para a próxima coluna!
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