Correio da Cidadania

Amazônia redescoberta

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A Amazônia representa mais de 60% do território nacional, nela vivem 20 milhões de brasileiros e não é de hoje que a região amazônica carece da atenção e da presença do Estado brasileiro. Na década de 70, a ditadura, através do INCRA, promoveu o processo de colonização de terras públicas, seja por razões geopolíticas de segurança nacional seja para reduzir conflitos fundiários e tensões sociais nas regiões nordeste e sul do país, em razão do crescimento da demanda por terras agricultáveis nestas regiões.

 

Naquela época, com a vigência plena do Estatuto da Terra, o governo autoritário, em vez de fazer valer a Constituição e os dispositivos legais que autorizavam o INCRA a desapropriar os latifúndios, conforme definidos na legislação, preferiu não desencadear o processo de reforma agrária, optando pela ocupação de terras públicas na Amazônia, uma via suposta e conjunturalmente "menos perigosa" sob a ótica política, ainda que com elevados custos sócio-econômicos e ambientais para a nação brasileira.

 

Com isso, a elite dominante brasileira seguiu a sua tradição perversa de desperdiçar sempre as maiores oportunidades de democratizar o espaço fundiário e as relações de trabalho no campo e pavimentar a via democrática e socialmente justa do desenvolvimento capitalista no Brasil. Foi assim na abolição formal da escravatura, quando a princesa assinou a Lei Áurea , mas não distribuiu a terra e nem garantiu moradia e escola aos escravos e seus filhos. Foi assim na República Velha, foi assim no Estado Novo e foi assim no golpe militar de 1964, que editou o Estatuto da Terra, mas que se tornou uma lei proclamada e não cumprida nos 20 anos de ditadura.

 

O governo da ditadura, depois da fase "heróica" de colonização, regulamentou a alienação indiscriminada de terras públicas na Amazônia e promoveu a farsa da regularização massiva de terras no Nordeste, por pressão e orientação do Banco Mundial, sob a alegação de que a ausência dessa titulação freava o processo de desenvolvimento. Com isso, circundava e escondia os graves e históricos problemas fundiários, sociais, econômicos e ambientais do Brasil e do Nordeste brasileiro.

 

Em 1985, com o fim da ditadura e a redemocratização do país, o Estado brasileiro abriu-se às reivindicações dos trabalhadores rurais organizados no movimento sindical, CONTAG à frente, e nos movimentos sociais (o MST surgia com grande força). Nesse sentido, as políticas de colonização, alienação de terras públicas e regularização fundiária foram substituídas – em razão da demanda social - por uma política, ainda que tópica, de assentamento de famílias em terras desapropriadas por interesse social para fins de reforma agrária, com pagamento da terra nua em títulos da dívida agrária. Ainda que o marco regulatório agrário precise de aperfeiçoamentos para acelerar e ampliar o processo de reforma agrária, como agilização judicial e fixação de novos índices de produtividade, o governo Lula ampliou o número de famílias assentadas, em particular na Amazônia Legal, e o crédito agrícola, distribuído aos assentados e agricultores familiares através do Pronaf, teve uma elevação expressiva alcançando R$ 12 bilhões.

 

Os conflitos fundiários na Amazônia fazem lembrar a história da ocupação e grilagem das terras no Brasil Colônia, quando no território brasileiro habitavam mais de cinco milhões de índios de diferentes etnias. Hoje, além do desmatamento praticado por madeireiros, fazendeiros e grileiros, dois fatos insólitos nos envergonham: a absolvição do fazendeiro-réu condenado a 30 anos de prisão no primeiro julgamento como mandante do assassinato da Irmã Dorothy, no estado do Pará, e a ação criminosa da pistolagem contratada pela insanidade de fazendeiros contra as comunidades indígenas da terra indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima. O voto admirável do ministro Carlos Ayres Britto nos enche de esperança em ver confirmada pelo Supremo Tribunal Federal a homologação em terras contínuas assinada pelo presidente Lula.

 

Na questão agrária, sempre sobressaiu o absolutismo que se empresta ao direito de propriedade, como se este se sobrepusesse ao direito à vida. Nos dias atuais, há certo consenso em relativizar o direito de propriedade, condicionando-o à sua função social.

 

O equilíbrio entre eqüidade social e liberdade parece ser o novo padrão civilizatório que se deseja, harmonizando direitos coletivos, sociais e públicos com liberdade individual, política e econômica. Neste sentido, hoje o Brasil parece buscar esse equilíbrio, mesmo com todas as mazelas e injustiças que ainda imperam em sua sociedade.

 

Infelizmente, entretanto, não estamos livres de preconceitos de quem acha desperdício a distribuição de renda aos pobres, como a promovida pelo salário mínimo e o Bolsa Família, ou a distribuição de terra aos trabalhadores rurais pela reforma agrária, mas se cala diante da iniqüidade de privilégios econômicos e financeiros que sempre favoreceram os mais ricos e poderosos, como agora o lobby dos grandes interesses econômicos nacionais e estrangeiros na Amazônia, que se expressam, às vezes, na regionalização e regularização fundiária voltadas para esses interesses.

 

A regionalização e a regularização necessárias, respeitadas as peculiaridades regionais e locais, devem ter caráter nacional e estar subordinadas ao desenvolvimento democrático, socialmente justo e sustentável da nação, no qual a reforma agrária, o reordenamento fundiário, o meio ambiente, a agricultura familiar, a sociedade organizada e o interesse público tenham centralidade e protagonismo. No debate sobre a Amazônia como estratégica para o desenvolvimento do Brasil, é preciso aprofundar as discussões e evitar regulações e arranjos institucionais precipitados e mal avaliados que não correspondam ao interesse público e às prioridades da região e do país.

 

O governo Lula nasceu da luta organizada dos trabalhadores brasileiros e de pessoas como Chico Mendes e Padre Josimo, além de muitos heróis anônimos, como os mortos nos massacres de Corumbiara (em Rondônia) e de Eldorado dos Carajás (no Pará). Homens e mulheres que lutaram pela vida e por um mundo sem pobreza, desigualdades e violência. Nesse debate, redescobrir a Amazônia é ouvir os movimentos sociais, compreender a realidade regional, preservar a nossa riqueza e lembrar, sobretudo, o compromisso do governo Lula, do PT e da nossa história de lutas, para que os direitos dos sem-terra, dos povos indígenas e das populações tradicionais, como seringueiros, ribeirinhos e quilombolas, sejam respeitados e reparados historicamente, de modo que a pátria seja de todos os brasileiros, constituída por uma sociedade justa e democrática e calcada na solidariedade, na igualdade, em novos padrões ambientais e civilizatórios.

 

Oswaldo Russo é coordenador agrário nacional do PT e ex-presidente do INCRA.

 

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