Correio da Cidadania

Os ribeirinhos do Médio Xingu (2)

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Continuando a narrativa da minha subida do rio Xingu a partir de Altamira para filmar um documentário sobre economias alternativas da região amazônica, concluí a primeira parte deste artigo lembrando do meu temor momentâneo ainda em Belém. Lá, soube por meu colega de viagem, Tarcísio, que ele pertencia à lista de executáveis, da mesma região onde assassinaram a irmã Dorothy Stang, em 2005. Então eu poderia estar na linha de fogo dos grileiros. Em Altamira, perguntei de novo para Tarcísio quão perigosa seria essa viagem. Ele me falou que não havia nenhum perigo e que eu não devia me preocupar. Muito diferente do que ele me dissera antes. Decidi não avançar com o assunto, mas brinquei que ia passar a viagem deitada no chão do bote. Durante a viagem, esqueci desse perigo. A emoção do vento e da chuva varreu qualquer preocupação. E por ora estávamos livres no Xingu, alegres, cabelo ao vento.

 

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Toda a liberdade e emoção desapareceram rapidamente quando desembarcamos na casa dos primeiros ribeirinhos. Os "purês", pequenos mosquitos pretos, baixaram sobre nossos corpos, cada um deixando uma pequena marca vermelha de sangue onde mordiam, em toda parte, por nossas pernas, braços e rostos. Então, tomamos banhos de repelente.

 

O chefe da família do local onde desembarcamos, Bernardinho, sentou-se dentro da canoa de madeira com as pernas para fora, balançando. Dois dos seus filhos ficavam ao redor dele. Bernardinho de vez em quando matava um mosquito, mas não se preocupava demais com eles. Dava um tapa em suas próprias costas, falava algumas frases, um tapa no braço, resignado, com naturalidade. Eu tentei usar toda a minha prática em meditação para ficar calma. Tarcísio pediu ao Bernardinho contar-nos a estória recente de um homem que se chama Louro, quem, havia poucos dias, fora ameaçado por grileiros que lhe deram um forte golpe na cabeça com um remo de madeira! Bernardinho nos contou o que ele ouvia.

 

Bernardinho nos convidou para o almoço. Havia muita lama na beira do rio. Muita lama! Havia também dois cachorros bem magros e várias galinhas. Atravessamos a lama sobre pontes improvisadas de tocos finos, tentando não cair. Seguimos a trilha até sua casa, rodeada de uma roça de milho. A casa não tinha paredes, só teto e chão de terra. Tinha estantes com utensílios de cozinha, uma canoa cheia de sacos de terra, um tacho (aquela panela enorme que seca a mandioca), uma mesa pequena de madeira com três cadeiras, alguns banquinhos e várias redes. Aceitamos com enorme gratidão o arroz, o feijão e a carne, e conversamos com a esposa e as filhas. O céu nos presenteou com uma leve chuva, que demorou só cinco minutos e passou. Uma pequena sugestão da tempestade que cairia mais tarde. Voltamos para o barco e continuamos nossa viagem por mais seis horas.

 

Dois dias depois, após muitas picadas de mosquitos e duas chuvas fortes, finalmente conhecemos o Louro, o ribeirinho que havia sido agredido pelos grileiros. Era uma figura pequena, frágil, suave no jeito de ser e calmo. Foi difícil imaginar quem poderia lhe dar um golpe na cabeça com remo de madeira. Desembarcamos um tripé e uma câmera e montamo-os a um metro do rosto dele. Tarcísio e Herculano explicaram que queríamos filmar o depoimento sobre o que lhe acontecera alguns dias antes, para que pudéssemos levar a gravação a Brasília. Ou até melhor, poderíamos levar ele mesmo para Brasília. Alguns amigos seus, dois pescadores, chegaram de barco e nos olhavam enquanto limpavam peixes. Confesso que, quando chegaram, temi que fossem os grileiros, vindo para nos perturbar ou matar.

 

Louro nos contou sua própria estória com todos as detalhes. Há poucos dias, ele estava no seu barco quando três homens aproximaram-se num outro barco e disseram-lhe que ele deveria partir da sua terra, senão eles o matariam. Louro falou para os grileiros que não estava causando dano a ninguém, que não tinha porque criar dificuldades e que estava vivendo sua vida tranqüilamente e em paz. Daí, um deles pegou o remo e lhe deu um golpe forte na parte trás de sua cabeça, antes de fugir gritando novas ameaças. Louro nos contou sua estória com uma calma surpreendente. Não senti nenhuma indignação na sua voz. Estava, porém, um tanto desconcertado, surpreendido, preocupado.

 

Parte da nossa missão nessa viagem era instalar três rádios amadores em três comunidades de ribeirinhos que lhes dariam apoio em questões de segurança e saúde. A maioria dos ribeirinhos não tinha como pedir qualquer forma de socorro se um membro da sua família adoecesse. Um deles recordou quando o seu pai, ainda jovem, foi cortado por acidente com um facão e sofreu por muitos dias com a infecção antes de receber cuidado médico.

 

Diversas famílias vivem a muitos dias de Altamira, para onde viajam em barcos e pequenas canoas. Em caso de emergência, eles teriam a capacidade de chamar um barco mais veloz, como o nosso, para levá-los à cidade. Mas, além da questão da saúde, todos nós sabíamos de outra meta. Tendo rádios amadores, os ribeirinhos poderão denunciar as ameaças que receberem dos grileiros rapidamente e de uma forma algo pública. E assim poderão defender-se melhor. Os ribeirinhos não são, pelo que eu pude perceber, um povo violento. Ao contrário, digo até que são dóceis e tementes a Deus. Mas, com os rádios amadores, poderão relatar incidentes rapidamente para as comunidades vizinhas e para Altamira, que poderiam, talvez, mandar algum apoio.

 

Os rádios foram presente de uma organização alemã. Instalamos rádios nas comunidades de São Miguel, Morro de Félix e São Sebastião. A comunidade de São Miguel recebeu definitivamente este nome em função da nossa passagem e da instalação do rádio-amador por lá. A comunidade já foi chamada por vários nomes diferentes, por pessoas diferentes, incluindo o povo indígena que vivia no outro lado da ilha. Nunca deram importância para um nome oficial até instalarmos o rádio. Desde então, assim se identificariam oficialmente cada vez que entrassem em contato com os outros.

 

São Miguel é uma comunidade pequena com cinco ou seis casas em uma colina, cheia de flores, crianças saudáveis que sorriam e galinhas gordas correndo por toda parte. Além de roçados viçosos com pés de mandioca, ao lado de um pomar com açaizeiros, bananeiras, mangueiras e outras espécies frutíferas. Ninguém sofria de problemas de saúde em São Miguel. E ninguém reclamou da violência, nem de problemas com grileiros. Quando perguntei sobre esses problemas ao nosso novo amigo local, Raimundo, ele respondeu de forma como se estivesse quase surpreso com a pergunta, como se tais coisas nunca pudessem acontecer. Evidentemente, ele sabia dos problemas que os ribeirinhos sofrem nas terras vizinhas. Mas parecia haver um escudo ao redor daquele pequeno paraíso. Nem havia muitos mosquitos e pernilongos ali. Tarcísio explicou mais tarde que São Miguel era uma velha comunidade, bem instalada, e ninguém ousaria perturbá-los; infelizmente, isto não era verdade para a velha comunidade de São Sebastião, nossa última parada.

 

Morro do Félix, nosso segundo ponto de instalação de rádio-amador, era muito diferente de São Miguel. Foi difícil alcançar a casa principal sem perder os sapatos na lama. São Miguel escapou desse destino por estar localizada numa colina. Eu, carregando o peso da minha rede, mosquiteiro, mochila e 1,5 litro d’água nas mãos, abandonei minhas chinelas na metade do caminho. Na comunidade de Morro de Félix havia montes e montes de mosquitos e muitos cachorros magros e doentes. Chegar à beira do rio de tarde para se banhar parecia quase impossível por causa da lama e mosquitos, então decidimos dormir sujos. O lugar nos pareceu sinistro.

 

Ainda mais que, quando instalamos o rádio, algum defeito mecânico impediu o seu funcionamento. Foi incrível reparar como era diferente a "personalidade" de cada lugar em nossa viagem. Antes de chegar ao destino final, passamos por um morro grande que fora completamente desmatado recentemente. Tarcísio explicou que era o sítio anterior da comunidade de São Sebastião. Os morros cobertos de pasto verde-claro contrastavam profundamente com o verde-escuro da mata que cobria a maioria da terra durante nossa viagem. Fazendeiros, explicou Tarcísio, há poucos anos atrás expulsaram a comunidade de São Sebastião inteira de sua localização anterior. Os fazendeiros cortaram e venderam as árvores, incluindo a fonte de renda da velha aldeia, as castanheiras, e colocaram uma fazenda de gado no lugar. Agora, a comunidade de São Sebastião mudou-se para sua localização atual, alguns quilômetros rio-acima.

 

Lisa Feder é antropóloga norte-americana e faz trabalhos na Terra Indígena Kayapó.

 

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