Correio da Cidadania

Trema nunca mais

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Em breve, o trema deixará de ser uma preocupação. Muitos já nem davam importância à sua presença. Agora é oficial, e haverá comemoração: o novo acordo ortográfico prevê seu desaparecimento. Decreta, melhor dizendo, o seu desaparecimento, a sua extinção, a sua inexistência.

 

Sentirei falta dele. Eu que, professor e escritor, lutei durante a vida inteira pelo trema sem temor já posso prever profundas mudanças ao nosso redor. Sem este duplo ponto, nada mais será como antes.

 

O qüinqüênio ficará mais curto.

 

O liqüidificador perderá força e eficiência.

 

A nota de cinqüenta reais ficará desvalorizada.

 

O poliglota qüinqüelíngüe não dominará tão bem os seus cinco idiomas.

 

Os qüiproquós estarão para sempre resolvidos.

 

O pingüim, perplexo, andará menos charmoso.

 

O antiqüíssimo se tornará banalidade sem data, velharia sem graça.

 

Quantas conseqüências serão esquecidas por aí, no banco de praça, dentro do táxi, no meio do caminho!

 

A ambigüidade menos misteriosa, menos atraente, a arte se empobrecerá.

 

A própria Lingüística deixará de ser aquela ciência que outrora foi.

 

Os ungüentos abandonados, inúteis, inócuos, nas estantes e nos dicionários.

 

Tudo o que era subseqüente não terá mais razão de viver.

 

A lingüiça sem cor e sem gosto.

 

A eqüidade arruinada.

 

A tranqüilidade perdida.

 

O alcagüete, envergonhado de fazer o que faz, murmura: "Sem trema... que pena!".

 

Ninguém mais dará crédito ao eqüestre.

 

Vamos rir do seqüestrador, finalmente desarmado.

 

Nada mais deixará seqüelas, no corpo ou na alma, no papel ou na mente.

 

Não haverá mais argüições, e redargüir a ninguém caberá.

 

Contigüidade, coisa do passado.

 

A delinqüência mais freqüente.

 

A grandiloqüência desmoralizada, sem ter o que dizer.

 

Meu tipo sangüíneo se esvairá.

 

Ninguém agüentará coisa alguma.

 

Deus perderá ubiqüidade.

 

A iniqüidade ganhará mais espaço, na rua e na mídia.

 

O aqüífero morrerá de sede.

 

O eqüidistante inalcançável.

 

O triângulo eqüilátero cairá no chão e se quebrará em mil pedaços.

 

A eqüissonância desafinará.

 

Como transitar pela Rodovia Anhangüera outra vez?

 

Os sagüis se esconderão de nós, temendo que deles arranquemos mais alguma coisa, além do trema. Aliás, o fim do trema traz à mente alguns receios. Nada impede que, daqui a algumas décadas, a cedilha seja removida sem dó nem piedade. O til também. E o circunflexo...

 

Desmilingüido, o trema se despede de todos. Alguns lhe dizem: "já vai tarde!". O trema estremece de medo. Abre a porta dos fundos, e some.

 

Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e escritor.

 

Website: http://www.perisse.com.br/

 

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Comentários   

0 #5 Samuel 01-01-2009 21:07
Sentiremos saudade do trema. Como o comentário acima, restar-nos-á estudar alemão ou francês, em que há tremas em letras como "i".
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0 #4 Só resta estudar alemãoRicardo Stumpf 03-09-2008 10:00
Para os saudosistas do trema, como eu, resta estudar alemão, em que o trema vai sobre o 'a', 'u' e 'o'.
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0 #3 A melodia do textoSilvio de Tarso 22-08-2008 16:41
Instigante a reflexão critica que faz o professor Perissé sobre o fim do trema.Além do mais, o texto soa melódico, sugerindo, quem sabe, um bom samba de breque. Compositores atentos, poderiam, com a devida venia do autor, musicá-lo. compositores
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0 #2 TREMA NUNCA MAISLucrecia Anchieschi 16-08-2008 11:42
O TREMA traduzido em poema pelo Dr. Gabriel Perissé, já nos causa melancolia.Belíssimo!
Para nos consolar: "Sem trema, que trema (de medo) o alcagüete.
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0 #1 O tremaD. Demétrio Valentini 13-08-2008 11:02
o texto está ótimo! Um dos encantos da linguagem é sua procedência histórica. Simplificar a grafia é bom, para facilitar a todos. Mas com isto perdemos um pouco a referência histórica das palavras. Na língua portuguesa é ainda a etimologia que comanda a escrita de muitas palavras. Quando resolverem igualar a grafia, não levando em conta a etimologia, aí sim, muita graça de nossa "última flor do Lácio" desaparecerá. Por enquanto, o trema ainda não faz tremer ninguém!
D. Demétrio Valentini
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