Correio da Cidadania

Prometeu e o novo cinema latino-americano

0
0
0
s2sdefault

 

No 3º Festival de Cinema Latino-Americano, mereceu menção especial o filme Partes Usadas, dirigido no México por Aarón Fernandez e com música do Nação Zumbi. A proximidade entre México e Brasil não se limita à trilha sonora: o filme mostra como certos problemas são comuns em toda a América Latina. Para nós brasileiros, fica a impressão de que o enredo bem poderia se passar na periferia de São Paulo ou de alguma outra grande cidade do país.

 

Ivan, garoto de uns 14 anos, vive com seu tio Jaime na Cidade do México; juntos, acalentam o sonho de emigrar ilegalmente para os Estados Unidos, abandonando a pobreza em que vivem no México. Com seu amigo mais novo Efraín, Ivan ganha uns trocados lavando automóveis, entre um furto e outro. Do dinheiro que consegue, uma parte vai para os fliperamas e outra confia ao tio para pagar o "pollero", o galinheiro que o levará aos EUA. A fim de melhor capitalizar o fundo, Jaime inicia Ivan no roubo de peças de automóveis, num negócio parecido com o que no Brasil fazem os "robautos". A certa altura, Jaime decide usar o fundo com a namorada, e diz a Ivan que espere – assim que se estabelecer nos EUA, mandará o dinheiro para o sobrinho ir depois. Sentindo-se traído, Ivan abandona o tio e se une a Efraín, que também quer cruzar a fronteira do país rico. Juntos, vão vivendo de pequenos delitos até que o mais novo sofre um fatal acidente, numa tentativa de furto num estacionamento de shopping.

 

No filme, não há personagens da elite econômica, o que pode ser uma metáfora do tradicional absenteísmo das classes dominantes na América Latina – os donos dos carros importados que os meninos despedaçam e ao mesmo tempo sonham dirigir mal aparecem no filme –, parecem viver em outra realidade; e a grande ilusão do filme é ir para Chicago, dar definitivamente as costas aos problemas – ainda que para isso seja preciso roubar e matar. Há, então, uma violência latente, que, quando aparece, frustra todos os esforços e tentativas de emancipação das personagens, uma violência, intencional ou não, difusa nas relações sociais.

 

Essa violência revela a imaturidade dos garotos e faz todas as ilusões desmoronarem. Assim como a humanidade dependente de Prometeu, Ivan se vê incapaz de dar um rumo à própria vida. Só e desiludido, tudo o que tentou deu errado: o preço do paraíso consumista dos EUA é alto, é preciso roubar muito para pagar o galinheiro. Em inglês, não ingenuamente, pollero se diz Coyote, Prometeu às avessas, que não age por benevolência, mas por dinheiro - o cão do deserto ataca na fronteira entre a vida, se bem indigna ou insatisfatória, e a morte.

 

Mas, ora: que mito de Prometeu é esse, cara pálida? Expliquemos: diz o mito que Prometeu trouxe à humanidade nos seus primórdios o conhecimento do fogo, chamado "pai de todas as artes" na Grécia arcaica. Moral da história: sem a dádiva divina, a humanidade não teria sido capaz de sobreviver. E essa é uma ilusão que o belo filme de Aarón Fernández faz cair.

 

O desfecho da história mostra Ivan a contradizer o mito: depois do acidente com Efraín, Ivan volta à oficina de seu tio, para recuperar o dinheiro guardado para pagar o Coyote – vai usá-lo para pagar as despesas médicas de Efraín. De certa maneira, Ivan "rouba" esse dinheiro do tio. Mas, ao gosto popular, ladrão que rouba ladrão... E também Prometeu roubou o fogo dos deuses para salvar vidas. Mas isso não é o mais importante. Aqui, não cometeremos a gafe de contar o final do filme; digamos somente que, numa seqüência que talvez represente um amadurecimento, ele decide buscar sozinho suas novas ilusões e tentar, sozinho, salvar a própria vida. Se conseguirá, é assunto de outros filmes; agora, Ivan já não depende de mais ninguém.

 

Cordiais saudações.

 

***

 

Duas Notícias:

 

1) 36º Festival de Cinema de Gramado, de 10 a 16 deste mês de agosto de 2008. Da mostra paralela, vale destacar o documentário ‘O Aborto dos Outros’, de Carla Gallo, sobre a prática ilegal, mas mais comum do que se pensa, do aborto no Brasil, ilegalidade cujos efeitos constituem o verdadeiro crime contra as mulheres brasileiras.

 

2) Mostra Visionários: Audiovisual na América Latina, a partir de terça-feira, 5 de agosto, no Itaú Cultural, com filmes experimentais selecionados por (dentre outros) Arlindo Machado, cujo texto "Vozes e luzes de um continente desconhecido" se encontra no sítio virtual do evento: [http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2827].

 

Cassiano Terra Rodrigues, professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, muito lamenta não poder assistir pessoalmente à entrega dos Kikitos.

 

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

{moscomment}

Comentários   

0 #2 Fogo!Viça 08-08-2008 09:41
O fogo de Prometeu é um presente de grego? É o fogo que, no imaginário e no real, ergue e destrói coisas belas?

Segundo a resenha, o filme parece nos fazer sentir e entender melhor o mito da modernidade no cotexto do subdesenvolvimento latino-americano. Este é um cinema que rareia e que, no entanto, importa. Valeu pela dica. Grande coluna!

Saudações,

Viça
Citar
0 #1 belissima resenhaMarta 07-08-2008 12:56
Caro Cassiano,
o texto deixou-me com muita vontade de assitir o filme! se puder, gostaria de ver algo sobre o \"O segredo do grão\", que ouvi dizer que é ótimo.
sds!
Marta
Citar
0
0
0
s2sdefault