Correio da Cidadania

Iraque: a privatização da guerra

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Em setembro do ano passado, em pleno centro de Bagdá, seguranças que protegiam um comboio americano atiraram no povo, matando 17 pessoas, inclusive crianças. Investigações realizadas pela polícia iraquiana, forças de ocupação e FBI, comprovadas por um vídeo, demonstraram que não havia nada que justificasse os disparos.

 

O governo do Iraque protestou, exigindo a punição dos culpados. Ecoando a indignação nacional, decretou a expulsão em 6 meses da Blackwater, empresa responsável pelo massacre. Mas o governo Bush pediu e obteve que essa medida fosse suspensa, prometendo rigoroso inquérito e duras medidas punitivas.

 

Agora, 11 meses depois, os atiradores continuam em liberdade. Sequer foram processados pelas autoridades de Washington. Pior do que isso: em abril último, o Departamento de Estado renovou por mais um ano seu contrato com a Blackwater.

 

Alegou-se que não havia como indiciar os seguranças, pois, sendo civis, não

 

estariam sujeitos à legislação militar americana. Nem à justiça iraquiana, de acordo com leis impostas anteriormente pelo governo de ocupação.

 

Esse foi certamente o incidente de maior repercussão protagonizado pelos seguranças estrangeiros no Iraque. Mas não foi o primeiro, dezenas já aconteceram, como a participação de contratados das empresas CACI, Titan e L-3 nas torturas de Abu Gharib. Nem será, talvez, o último.

 

Um dos itens do acordo apresentado pelo governo americano para garantir a permanência de suas forças militares no Iraque é justamente a manutenção das imunidades legais desses mercenários modernos. Por enquanto, o governo de Bagdá rejeita esta proposta, mas tudo indica que acabará cedendo, pois o emprego de seguranças na realização de funções próprias das forças armadas é política de Estado do governo Bush. Patrick Kennedy, subsecretário de Estado para assuntos administrativos, diz por que: "Se os seguranças fossem removidos, nós teríamos de sair do Iraque".

 

Hoje, atuam no Iraque cerca de 600 empresas de segurança. Segundo o GAO (Government Accountable Office, órgão de controle do Congresso), em 2006 elas empregavam 126 mil contratados, quase 1 por soldado americano no país. Parte deles não usa armas, realizando tarefas de apoio. Mas a maioria atua na segurança de comboios, diplomatas, empresários, edifícios e em combates e ações "sujas", como o fomento à discórdia entre sunitas e xiitas e ataques que convêm não ser revelados. A maior dessas empresas, a Blackwater, de propriedade de Erick Prince, amigo e financiador das campanhas de Bush, dispõe de uma verdadeira base militar, com aeroporto e campos de tiro, na Carolina do Norte, numa área de 30km². Ela já ganhou contratos de 1 bilhão de dólares na privatização da guerra do Iraque. Sabe-se que, recentemente, o governo consultou a Blackwater sobre a possibilidade de a empresa assumir toda a operação anti-drogas na América Latina, o que poderia lhe render 15 bilhões de dólares.

 

O uso destes exércitos de mercenários oferece diversas vantagens. Suas baixas não são contabilizadas, reduzindo-se assim o número de americanos mortos ou feridos em combate comunicado oficialmente, o que atenua o impacto negativo na opinião pública. Em termos práticos, a morte de cada mercenário poupa a vida de um soldado que normalmente estaria em seu lugar.

 

Além disso, participam de tarefas encobertas - 15% dos contratos da Blackwater são "classified", mantidos em segredo -, pois são contrárias à ética ou às leis de guerra e poderiam macular a imagem de "soldados da democracia" que a Casa Branca deseja.

 

Há também o lado financeiro. Embora os mercenários ganhem muito mais do que os militares e as empresas obtenham grandes lucros, mesmo assim o governo acaba economizando, pois não precisa gastar em treinamento, alimentação, transporte, alojamentos, hospitalizações e assistência médica.

 

Mas as críticas à privatização da guerra promovida pelo governo Bush são sérias. Estando acima da lei, os mercenários podem cometer as barbaridades que quiserem que não serão punidos, pois, além da ausência de legislação que regularize suas atividades, contam com o apoio do governo para encobri-las. Desde o início da invasão do Iraque, apesar das muitas vítimas civis que fizeram, apenas dois deles foram indiciados. Essa licença para matar lhes dá um poder sem limites, muitas vezes exercido contra a população civil. É também preocupante o fato de que suas ações não estão sob controle do exército regular, pois quem os comanda são seus próprios chefes, cujos padrões de conduta não se cifram pelo respeito aos direitos humanos.

 

Comentando essa situação, Michael Rainer, do Center for Constitucional Rights, diz que "as falhas repetidas e consistentes da Blackwater em agir de acordo com a lei da guerra, a lei dos Estados Unidos e a lei internacional prejudicam nosso país e o Iraque. Pelo bem deles e de incontáveis civis inocentes, a companhia não pode ser autorizada a continuar fornecendo mercenários que violam todo tipo de lei".

 

Países da América Latina incluem-se entre os prejudicados pelas empresas de segurança. Em diversos deles, agentes da Blackwater recrutam ex-soldados e ex-policiais para irem lutar no Iraque como seus contratados. Isso faz com que nações cujo povo e governo são contra a invasão acabem tendo centenas dos seus cidadãos integrados aos exércitos mercenários.

 

Foi o que aconteceu no Chile, onde 92% da população opõem-se à ocupação do Iraque e cujo governo votou na ONU contra a invasão, negando-se a enviar soldados. E em Honduras que, depois de retirar o contingente que havia enviado, viu hondurenhos armados de volta ao inferno do Iraque.

 

A ONU estudou durante dois anos essa nova e bizarra privatização do governo Bush e concluiu, em outubro de 2007, que usar guardas privados para cumprir deveres militares era ilegal sob a lei internacional.

 

Bush nem se tocou, mas Obama vem reafirmando que banirá do Iraque as empresas de segurança. Mas há quem duvide. De fato, como o candidato democrata pretende manter os mil funcionários da embaixada americana em Bagdá – a maior do mundo – e, ao retirar o grosso do exército, deixar consultores militares e forças razoavelmente numerosas para "defender" a democracia iraquiana, precisará das empresas de segurança para a proteção de comboios, edifícios e pessoas. O máximo que Obama poderia fazer seria acabar com a participação delas em combates, interrogatórios e outras tarefas específicas das forças armadas.

 

Mas seria suficiente para pôr na linha o pessoal da Blackwater e congêneres? Há um projeto, aliás, apresentado pelo próprio Obama, que cria leis para punir os crimes dos mercenários. A indústria militar é contra. Mãos livres para os mercenários, evidentemente, é algo que ajuda a perpetuar a guerra, sua grande fonte de lucros.

 

Antecipando a vitória de Obama, ao invés de continuar privilegiando maciçamente os candidatos republicanos como sempre fez, colocou 52% de suas doações na campanha do democrata, contra 34% na do adversário. Mas não se pode garantir que é por isso que o projeto de Obama está parado no Senado há mais de um ano.

 

Luiz Eça é jornalista.

 

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