Correio da Cidadania

Centenários (2): santidade e pecado em Machado de Assis

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Tão genial e suficiente em si mesma é a obra do "bruxo" do Cosme Velho, como era chamado Machado de Assis, que se torna difícil escolher um tema entre os tantos que tratou com maestria em seus inúmeros livros. O centenário de sua morte e as comemorações que se fazem em todo o país motivam a trazer modestamente o olhar da teologia para falar desse grande escritor que nunca primou por sua prática religiosa e foi bem cético.

 

E, no entanto, homem de seu tempo e seu lugar, a presença da religião nunca esteve ausente da obra machadiana, chegando mesmo a ser explicitada em muitas delas. Seja pela referência a práticas religiosas, seja por impiedosas e lúcidas críticas ao clero, seja pela descrição da fé de seus personagens. O fato é que Machado traz para o seu universo o componente da religião, que não pode faltar em alguém que, como ele, constrói seus romances a partir de uma análise profunda da alma humana.

 

Em seus personagens femininos, concretamente falando, pode-se encontrar muito da dimensão da dinâmica da graça e do pecado que formam o tecido mais íntimo da humanidade. E que se confrontam incessantemente, fazendo vir à tona o drama da vida e as sutilezas dos sentimentos. Profundo conhecedor da alma feminina, Machado construirá personagens imortais de mulheres que até hoje são protótipos para se entender essas que formam a metade da humanidade.

 

Para tomar apenas o romance maior, Dom Casmurro, podemos constatar que ali a trama se constrói ao redor de duas mulheres: Capitu e Dona Glória, a mulher e a mãe, a pecadora e a santa, a oblíqua e a honesta. À primeira vista, parece muito evidente a dicotomia entre uma e outra, sobretudo para o leitor desavisado, que lê o romance com os olhos do narrador, que é Bentinho. No entanto, uma leitura mais crítica vai deixando evidente a complexidade que transita nessas duas mulheres, nas quais Machado descreve toda a complexidade do coração humano.

 

Dona Glória é uma mulher religiosa, temente a Deus, que faz promessas e freqüenta pontualmente todas as cerimônias religiosas que lhe impõem sua condição de católica devota. Capitu é linda e sensual, atraente, sedutora e usa do poder de seus olhos de ressaca para manter a seus pés o homem que deseja e que a deseja com paixão. É uma mulher carnal, explicitada pela corporeidade e pelo desejo e nada mais. Ao ler Dom Casmurro, parece que a graça está com Dona Glória e o pecado com Capitu.

 

Entretanto, Machado tem a maestria de prosseguir a narrativa, deixando o leitor com mais dúvidas do que certezas. Será mesmo santa essa mãe que decidiu a vida do filho à raiz das próprias perdas e frustrações? Não será a vocação sacerdotal que idealizou para ele, na verdade uma tremenda auto-projeção, que pretende realizar no filho aquilo que não consegue por si?

 

Capitu aparece como adúltera e traidora. Mas, afinal, ela traiu ou não? O filho é de Escobar ou é de Bentinho? E o suposto adultério de Capitu seria mesmo tão grave pecado? Ou, ao contrário, seria o desespero mudo de uma mulher frustrada em seu casamento pela presença de um homem fraco, que não é para ela um parceiro, um companheiro?

 

O benefício da dúvida permanece até o fim. E a solidão tremenda e vazia em que Machado deixa seu personagem Bentinho no final do livro dá testemunho desta perplexidade diante de uma vida que se apresenta desértica porque carente de amor e sentido.

 

Porém, o Machado que escreve romance tão inclemente não é descrente do amor. Que o diga o maravilhoso Soneto a Carolina com que homenageia a esposa já falecida, claro testemunho de que, fosse qual fosse sua filiação religiosa ou a ausência dela, o amor que viveu e vive é mais forte que a morte.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

 

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