Correio da Cidadania

Banco Central: sitiado ou estrela-guia?

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Com a adesão de Lula e de seu governo à política macroeconômica de interesse do capital financeiro – entenda-se como tal, principalmente, os bancos e as grandes corporações empresariais, com atuação transnacional –, convencionou-se rotular o governo atual, especialmente em seu primeiro mandato, como um governo "em disputa".

 

Essa rotulagem interessava aos setores de esquerda que apoiavam, e ainda o fazem, o governo. Esses setores atribuíam as opções de Lula, em favor de uma política econômica ortodoxa, como uma contingência da situação deixada por FHC, onde o endividamento público era explosivo e a pressão inflacionária poderia comprometer a almejada estabilidade de preços.

 

Para esses setores, os grandes vilões contra políticas de desenvolvimento e geração de empregos eram o Banco Central e a taxa de juros. Porém, tudo seria uma questão de tempo. Quando a situação viesse a melhorar, o governo poderia alterar a sua política econômica.

 

Nesse primeiro mandato de Lula, esses setores chegavam até mesmo a personalizar essa suposta disputa, colocando Antônio Palloci (e Henrique Meireles) como representante maior da "direita", da ortodoxia, enquanto José Dirceu, chefe da Casa Civil, seria o expoente maior de uma ala desenvolvimentista dentro do governo.

 

O tempo passou, Palocci e Dirceu acabaram caindo. Esse último é hoje um saltitante lobista confesso de interesses de multinacionais, e, apesar da política econômica não ter se alterado, os efeitos da mesma começaram a apresentar resultados aparentemente animadores. As contas externas começaram a apresentar saldos comerciais expressivos, puxados pela demanda asiática e seus efeitos nos preços das commodities agrícolas e minerais; taxas de crescimento da economia melhoraram um pouco em relação aos anos de governo FHC, elevando a oferta de emprego; e, particularmente desde o início do segundo mandato, o lançamento e propaganda massiva do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – fizeram com que muitos daqueles que acreditavam na suposta disputa passassem a crer que já havíamos ingressado em uma hegemonia "desenvolvimentista".

 

Passavam também a crer (estimulados inclusive pela abordagem feita por muitos órgãos da grande imprensa) que o Banco Central – que continua sob direção do agora blindado "ministro" Henrique Meireles, para evitar complicações judiciais – havia se transformado em uma espécie de bunker dos liberais, um órgão sitiado pelos ortodoxos, em meio a um governo onde os desenvolvimentistas passavam a ser maioria e força maior de inspiração de Lula nesse seu segundo mandato.

 

Entretanto, bastou o aparente início da reversão do excepcional quadro da conjuntura externa – provocado pela crise financeira nos Estados Unidos, mas com importantes reflexos na Europa e no Japão – para que as esperanças dos mais afoitos e otimistas possam estar comprometidas.

 

O Banco Central, por exemplo, voltando a evocar os riscos de um descontrole da inflação – a partir das metas estabelecidas pela própria equipe econômica – acaba de recorrer ao velho e lucrativo, para bancos e financistas, remédio da alta da taxa de juros. Em um contexto em que os países em geral estão trabalhando com taxas de juros reais extremamente baixas ou até mesmo negativas, o Brasil volta a ter a taxa real mais alta do mundo.

 

Até mesmo o outrora desenvolvimentista Guido Mantega, em peregrinação aos Estados Unidos, admite que não é conveniente ao nosso país crescer a taxas superiores a 5% ao ano, repetindo, com uma leve variação, o que antes era uma espécie de lugar-comum do discurso de Pedro Malan.

 

A preocupação principal dessas autoridades continua sendo a sensibilidade e os humores dos nossos credores, e não os interesses e necessidades da nossa população.

 

Crescimento forte da economia – dado o modelo econômico em curso, baseado em metas de inflação rígidas, arrocho fiscal e câmbio definido pelo movimento especulativo de divisas – leva inevitavelmente a um comprometimento muito sério da nossa balança comercial, pelo crescimento que acaba produzindo nas importações. E o saldo da balança comercial é a mais importante variável para um não descontrole das nossas contas externas.

 

E, assim, continuamos a vivenciar a hegemonia neoliberal, em meio a um governo que, tendo as suas origens na esquerda, optou por assumir a política e as preocupações da direita.

 

Na política, infelizmente, assim como na vida em geral, as análises e as tomadas de posições nem sempre são pautadas por uma racionalidade que se baseie em uma apreciação da realidade, a partir de fatos objetivos. Elementos ligados à subjetividade, à maneira como cada indivíduo vê o mundo que o cerca, à sua fé, às suas convicções e compromissos de fidelidade grupal, e especialmente estritos interesses materiais, econômicos e também de natureza política, acabam tendo muito mais força e relevância do que qualquer outra variável.

 

Somente assim se pode explicar o fato de que setores de esquerda, que querem e precisam acreditar no governo Lula, se deixem levar e acreditar em uma mudança de orientação substantiva entre o primeiro e o segundo mandato.

 

Todas as políticas públicas de responsabilidade do governo federal trazem a marca da inflexão doutrinária e política – para a direita – efetuada por Lula e seus aliados ditos de esquerda. As políticas ambiental, agrária, agrícola, de petróleo, de educação, de saúde, de seguridade social, de comunicações, de concessões de serviços públicos e de financiamentos oficiais em curso – só para ficar em alguns exemplos – representam a negação límpida de tudo o que as chamadas bases de esquerda do atual governo sempre defenderam.

 

Até mesmo a propalada política externa não pode ser excluída dessa triste lista. Se é verdade que a política diplomática, especialmente a voltada para a América Latina, é progressista e já cumpriu importantes iniciativas, é importante destacar também que as tropas militares brasileiras cumprem um papel muito grave no Haiti, país que teve um presidente deposto por uma ação direta de desestabilização patrocinada pelos governos dos Estados Unidos e da França. Além disso, o Brasil é hoje o principal país-suporte das iniciativas de grupos estrangeiros poderosos em nosso continente, "confiantes" na ordem econômica garantida pelo atual governo federal.

 

E é nesse contexto que é forçoso reconhecer que, muito diferente de ser uma ilha no atual governo, a direção emanada do Banco Central é a verdadeira estrela-guia das principais e decisivas opções do Palácio do Planalto.

 

Paulo Passarinho é economista.

 

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