Correio da Cidadania

A Função Social da propriedade na ótica da justiça

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Pelo título com o qual dou início a este artigo parece que vou escrever um texto teórico acerca de tema tão debatido no Direito: a função social da propriedade. Não vou gastar mais tinta com teorias, especialmente depois do reconhecimento deste princípio como um direito fundamental na Constituição de 1988, o que deu ensejo a tantos trabalhos acadêmicos brilhantes que enfrentaram essa questão com maestria.

 

Contrariamente, quero falar de um fato ocorrido em Belo Horizonte, dia 14 de fevereiro de 2008. Ele nos deixa claro o imenso caminho a ser percorrido para efetivamente podermos pensar em justiça no Brasil. O caso concreto mostra como as decisões judiciais interpretam às avessas a função social da propriedade e, de um modo geral, os princípios fundamentais constitucionais.

 

É certo que alguém já disse que quando falamos de "social" estamos falando dos pobres. Quando dizemos "sociedade" estamos falando dos ricos. Pois é, o "social" foi despejado, enquanto a "sociedade" comemorou a ordem de reintegração de posse concedida liminarmente por uma juíza da Vara Cível de Belo Horizonte.

 

Aconteceu assim: treze famílias estavam sendo despejadas de um imóvel ocupado há alguns dias na Avenida Amazonas, 2311. O oficial de justiça, com o apoio de um forte aparato policial, estava intransigente no cumprimento imediato da ordem, retirando todos os ocupantes da casa. Alguns moradores estavam fora trabalhando, quando o oficial chegou com a polícia, advogados e a própria autora, que se afirma proprietária do imóvel.

 

Trata-se na realidade de um imóvel situado na Avenida Amazonas, próximo ao cruzamento com a Avenida do Contorno, em péssimo estado de conservação e praticamente abandonado. O que causa espanto é que, de um lado, estava a autora do pedido de reintegração de posse, e que se diz proprietária do imóvel, acusada no final do ano passado de participar de um esquema de fabricação ilegal de uma droga para emagrecer, comercializada como produto natural com o nome de ‘Emagrecesim’. Essa prática é considerada tráfico ilícito de entorpecentes, pois, além de nociva à saúde, a droga causa dependência aos usuários.

 

Mesmo estando com o imóvel indisponível, já que o mesmo pode vir a ser confiscado em vista do que dispõe o parágrafo único do artigo 243 da Constituição Federal, a autora obteve a liminar, sem que a outra parte fosse ouvida.

 

Do outro lado do processo, estavam as treze famílias Sem Teto. Com os seus poucos pertences, suas crianças, idosos, desempregados e deficientes físicos, foram todos postos na rua sem ter para onde ir. Os guardiões da "ordem pública", a postos, puseram todos para fora da propriedade, mesmo estando o bem sujeito a confisco por parte da União.

 

Pode ser que alguém advogue que o princípio da presunção de inocência assegura à autora o direito de aguardar o trânsito em julgado da sentença penal antes de ser condenada. Pode ser também que alguém afirme que a Constituição garante a liberdade e os bens, que somente sofrem restrições por meio do devido processo legal. Todavia, será que realmente, diante deste caso concreto, a autora poderia obter a proteção legal possessória em face da existência de um processo que mostra cabalmente a prática de crime que condena à perda da propriedade? Será que o Estado, por seus agentes públicos, juízes, oficiais de justiça, policiais, tem legitimidade para pôr na rua todas essas pessoas que receberam do legislador constituinte uma proteção especial, crianças, idosos, deficientes físicos? Não poderia a juíza ter um pouco mais de cautela antes de deferir liminarmente a ordem apenas com base nas informações trazidas pela autora?

 

Ao final tivemos um alento. A chegada da imprensa fez com que a autora fugisse das câmeras e se refugiasse em uma lanchonete próxima. Um dos advogados da autora preferiu negociar um prazo maior, até o dia 25/02/2008, para a saída das famílias a ter de expor a sua cliente aos dissabores de novas aparições na TV. Todos iriam saber que crianças inocentes, idosos e deficientes sem teto foram obrigados a sair do imóvel seqüestrado pela justiça federal. A única moradia seria então o passeio público. Por sua vez, a acusada de tráfico ilícito de entorpecentes e outros crimes recebia liminarmente a proteção da justiça, com forte aparato policial.

 

Foi duro para os presentes conter as lágrimas em dois momentos: ver os moradores voltarem do trabalho e encontrarem à sua porta a polícia. Foi duro também ver aquelas crianças de 3 e 4 anos sentadas no passeio dividindo um resto de arroz com feijão em uma panela velha de alumínio. Essa é a nossa justiça!

 

Delze dos Santos Laureano é professora de Direito Constitucional e Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara e membro da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares.

 

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Comentários   

0 #3 marcio notari 23-02-2008 13:41
parabens pelo artigo, pois, cabe a nova geraçao de juristas construir uma sociedade mais justa sob um olhar alternativo diante dos conflitos sociais, compreendendo a nossa realidade e dos novos sujeitos coletivos de juridicidade, os movimentos sociais. sou acadmemico de direito da ucpel 9° semestre e grande fã um abraçao parabens pelo artigo.
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0 #2 Cometário textoPaulo Henrique Lima de Oliveir 20-02-2008 22:35
O texto nos ajuda a entender que a justiça tem variadas interpretações. Parabéns!
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0 #1 Discussão mais aprofundadaPaulo 20-02-2008 08:44
Caro Delze,

aquilo que alguns interpretam como ação judicial a ser cumprida sem nenhuma discussão, merece alguma críticas. parabésn pelo seu artigo. Paulo Oliveira
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