Correio da Cidadania

Ainda o Semi-árido

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Uma das dificuldades maiores no debate sobre a transposição do rio São Francisco é deparar com pessoas que ainda têm uma velha e obsoleta visão do que seja o semi-árido brasileiro. Normalmente essas pessoas repetem argumentos da velha indústria da seca e consideram o semi-árido como uma “região feia, seca, inviável, cujo problema central é a falta de água”. As pessoas repetem a esmo essas afirmações, sem se darem conta que estão apenas repetindo o velho discurso das oligarquias nordestinas, que sempre construíram seu poder a partir da sede e da fome do povo. Por isso, muitos artigos publicados em defesa da transposição não tinham sequer o conhecimento básico sobre o semi-árido para um diálogo construtivo.

 

Bem, aí é nosso dever, já que estamos envolvidos e defendemos outras propostas para o sertão. Temos perdido essa guerra para o rolo compressor do governo e seu marketing, mas também temos ampliado a difusão de nossas propostas. O governo tem pago e vai pagar um alto custo, inclusive eleitoral, por sua opção.

 

Há uma nova concepção do semi-árido, antagônica ao velho discurso das oligarquias, que traduz o confronto mortal entre dois modelos. A nova concepção do semi-árido – que chamamos de convivência com o semi-árido - começa de seu rico potencial. Essa região tem uma excelente pluviosidade – em se tratando de semi-árido -, com uma média anual de 750 mm que caem sobre um território de quase um milhão de Km2. Significa a precipitação de praticamente 750 bilhões de metros cúbicos por ano. Temos infra-estrutura para armazenar apenas 36 bilhões de metros cúbicos, ou seja, apenas 5%. Portanto, fundamento número um, teremos que ampliar a malha de captação dessa água em reservatórios que não permitam sua evaporação.

 

O bioma caatinga, o principal do semi-árido, é rico em biodiversidade e as plantas e animais já “aprenderam a conviver com essa realidade”. Quem nunca aprendeu foi o ser humano. Muitas plantas guardam água dos períodos chuvosos em suas raízes, mas a maioria “adormece”, “hiberna”, poupando energia até as próximas chuvas. A revolução cultural exigida aqui é fazer a poupança de água, de feno, silagem, alimentos, no período de chuvas, para viver bem nos períodos normalmente sem chuva. Não se muda esse clima, a saída é adaptar-se bem a ele. Esse é o segundo fundamento.

 

Para isso é preciso uma revolução cultural e educacional, que deve começar nas salas de aulas. É o que cobramos como educação contextualizada. Ela passa pela desconstrução do velho conceito de semi-árido, centrado no discurso da seca, para um novo entendimento, que exige uma nova prática política, social e ambiental. Terceiro fundamento.

 

Já temos um leque poderoso de tecnologias sociais capazes de oferecer uma vida muito mais digna à população. Elas vêm da sabedoria popular, das organizações e movimentos sociais, mas também da própria Embrapa Semi-árido. Bastaria que elas fossem maciçamente aplicadas – cisternas para beber, cisternas para produzir, barragens subterrâneas etc. -, além de uma reforma agrária consistente, para que a vida comece a melhorar consistentemente. É preciso também ter terra para que se possam criar animais de pequeno e médio porte, adaptados ao clima. Existem às dezenas. Quarto fundamento.

 

Para o meio urbano defendemos a implementação do Atlas do Nordeste, com suas adutoras levando água diretamente aos serviços de abastecimento de 1.356 municípios – que agora vai ser refinado também para os municípios abaixo de 5 mil habitantes -, oferecendo segurança hídrica a 34 milhões de nordestinos que vivem no meio urbano. É o quinto fundamento.

 

Muitas dessas propostas já estão se fazendo realidade, como o projeto 1 milhão de cisternas, mas estamos muito longe de ter a implementação de uma malha satisfatória dessas tecnologias. São experiências testadas e comprovadas em sua eficácia, ao menos para minorar o sofrimento das populações mais pobres do país.

 

Saídas, temos. Tecnologias, temos. Conhecimentos, temos. Nossa opção é por obras capilares, que cheguem ao povo, não mais por mega projetos, concentradores de terra e água. Não temos decisão política que queira implementá-los. Nossa luta é transformar essas possibilidades em realidade.

 

 

Roberto Malvezzi (Gogó) é membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Autor de "Semi-árido: uma visão holística" (Confea/Crea/2007).

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Comentários   

0 #1 Semiárido/TransposiçãoMarcos Sousa 01-03-2008 10:45
Roberto, o que você citou nos cinco fundamentos são essenciais e estou de pleno acordo. As obras capilares são importantíssimas. Mas você não acha que está faltando alguma coisa? As famílias vão viver somente da água acumulada, da criação destes pequenos/médios animais e do que produzem, contando com a cilagem, nos meses de chuva? Na minha opinião, além disto ser insuficiente para evitar o êxodo rural da Região em anos de inverno normal, é impossível em anos seguidos de seca. Digo isto porque nasci e fui criado nesta Região, especificamente no interior do Rio G. do Norte.
Portanto, acho que a interligação da bacia do São Francisco com as minibacias locais é algo extremante alavancador do desenvolvimento do Nordeste. Acho inclusive que o discurso contra a interligação chega a ser elitista e oligárquico, já que defende a manutenção de uma Região dependente e submissa às Regiões com maior desenvolmento econômico e social, situação que favorece a ação das oligarquias e políticos locais, que tanto dependem da submissão deste povo.
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