Correio da Cidadania

‘O homem que não conheceu o medo’

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O cardeal Paulo Evaristo Arns era um dos homens mais corajosos que conheci.

 

20 de janeiro de 1970. Dom Paulo Evaristo Arns obteve, enfim, permissão para visitar os frades dominicanos encarcerados no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Franciscano, o bispo auxiliar do cardeal Agnelo Rossi era responsável pela Pastoral Carcerária. Diante do diretor do presídio, narramos ao prelado nossas prisões, torturas, interrogatórios e ameaças recebidas.

 

21 de outubro de 1970. O papa Paulo VI declarou que o método de torturas se espalhava pelo mundo como uma epidemia, sem referência direta ao Brasil. Citou, porém, “um grande país” no qual se aplicavam “torturas, isto é, meios policiais cruéis e desumanos para extorquir confissões dos prisioneiros”. Acrescentou que esses meios “devem ser condenados abertamente”.

 

22 de outubro de 1970. Ao desembarcar em Guarulhos, procedente de Roma, o cardeal Agnelo Rossi, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), declarou que “no Brasil não existe perseguição religiosa, e, sim, uma campanha de difamação dirigida do exterior contra o governo brasileiro”. Segundo o cardeal, ao condenar a tortura o papa não se referia ao Brasil. Na tarde do mesmo dia, dom Rossi foi destituído pelo Vaticano do arcebispado de São Paulo e nomeado prefeito da Congregação de Evangelização dos Povos, em Roma. No mesmo ato, o papa nomeou dom Paulo Evaristo Arns para suceder a ele à frente da arquidiocese paulistana.

 

23 de outubro de 1970. Recebemos, no Presídio Tiradentes, a visita de dom Paulo. Concedeu-nos a honra de sua primeira visita pastoral como novo arcebispo. Dali partiu para o retiro que antecedia a sua posse, a 1º de novembro de 1970.

 

21 de novembro de 1970. Fomos despertados às seis da manhã pela visita de dom Paulo. Veio celebrar conosco no Presídio Tiradentes. O altar, um caixote vazio de maçãs; o cálice, um copo americano; o templo, uma cela apertada; os fiéis, prisioneiros em sua maioria.

 

Janeiro de 1971. Dom Paulo denunciou a prisão do padre Giulio Vicini e da agente pastoral Yara Spadini. Encontrados com manifestos de protesto contra a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva — que se achava recolhido ao Hospital Militar à disposição das autoridades policiais —, foram torturados no Deops. O arcebispo invadiu a repartição e conseguiu avistar-se com os dois, que lhe mostraram as marcas das sevícias. Indignado, mandou afixar em todas as paróquias da arquidiocese nota em defesa dos presos e de denúncia das torturas sofridas.

 

5 de maio de 1971. O general Médici recebeu, no Palácio do Planalto, dom Paulo, que lhe relatou casos de torturas. O ditador, com a rispidez que o caracterizava, não se fez de rogado e reiterou: “Elas existem e vão continuar porque são necessárias. E a Igreja que não se meta, porque o próximo passo será a prisão de bispos...”

 

23 de dezembro de 1971. À tarde, hora das visitas, dom Paulo foi ao Presídio Tiradentes. Percorreu cada uma das celas. Demos a ele uma grande cruz de couro — a Comenda do Cárcere — pirografada com versículos do Evangelho, trechos do Documento de Medellín e nomes de todos os revolucionários assassinados. Gravamos: “O Bom Pastor é aquele que dá a vida por suas ovelhas”.

 

12 de maio de 1972. Dom Paulo, nosso mediador na greve de fome coletiva, esteve na Penitenciária do Estado, onde nos encontrávamos misturados aos presos comuns. Não nos permitiram vê-lo. Segundo o diretor, só podemos falar com os advogados. Porém, soubemos que o arcebispo advertiu-o de que está historicamente comprovado que medidas de isolamento carcerário geralmente precedem a eliminação física.

 

Em encontro com o juiz Nelson Guimarães, do Tribunal Militar, o arcebispo questionou-o: “O senhor sabe que é responsável pela vida dos presos?”. O juiz auditor assentiu: “Assumo a responsabilidade se vierem a morrer”. Dom Paulo retrucou: “Meu filho, assume dois ou três dias. Depois, não assume mais. Sua consciência passa a martirizá-lo. E que contas dará o senhor perante si mesmo e perante Deus?”. O juiz respondeu de cabeça baixa: “O senhor tem razão”.

 

Vladimir Herzog suicidado. Dom Paulo decidiu celebrar missa solene na Catedral da Sé em homenagem a ele. Judeus que apoiavam a ditadura tentaram demover o cardeal: “Por que missa para Herzog? Era judeu!”. Dom Paulo respondeu: “Jesus também.”

 

O cardeal Paulo Evaristo Arns era um dos homens mais corajosos que conheci. Imbuído da fé que caracterizou seu patrono e modelo, Francisco de Assis, jamais pensou no próprio sucesso. Sua vida dedicada ao próximo veio a público, com riqueza de detalhes, na obra “Dom Paulo Evaristo Arns — um homem amado e perseguido”, de Evanize Sydow e Marilda Ferri.

 

Se a História da independência do Brasil não pode ignorar Tiradentes, nem o movimento ecológico, Chico Mendes, a resistência à ditadura que nos governou 21 anos deve muito à figura ímpar de dom Paulo. O mesmo cuidado amoroso que São Francisco dedicava aos pobres e à natureza, dom Paulo estendeu às vítimas da repressão.

 

O livro “Brasil: Nunca mais” é uma radiografia irrespondível da ditadura, graças à iniciativa de dom Paulo e do pastor Jaime Wright, que promoveram uma devassa nos arquivos da Justiça Militar. Analisaram o conteúdo de mais de um milhão de páginas de processos políticos. A anistia ainda evita que torturadores paguem por seus crimes. Mas, graças a esses dois pastores, não se apagarão da memória brasileira o terror de Estado e o sofrimento de milhares de vítimas.

 

Dom Paulo Evaristo Arns rezou, com a vida, a oração de São Francisco de Assis, adaptada aos nossos tempos: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver... repressão e pobreza, que eu leve liberdade e justiça”.

 

 

 

Frei Betto, ex-preso político, é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

 

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