Correio da Cidadania

As serpentes de ouro de medusa

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Creio ter sido um dos primeiros economistas políticos brasileiros a se dar conta, ainda nos anos 80, de que o neoliberalismo não era um fenômeno puramente ideológico, mas o produto de uma realidade sociológica profunda que se exprimiu em maiorias eleitorais efetivas, sobretudo européias. É o que explica o deslizamento para a ala neoliberal mesmo de partidos tradicionalmente de esquerda, como trabalhistas ingleses (Terceira Via), socialistas franceses e sociais democratas alemães.

 

Acredito que quem originalmente levantou a cortina sobre esse processo de fundo foi William Greider, em seu monumental “The Secrets of the Temple”, sobre a história do Banco Central norte-americano. Ele “sacou” que a maioria eleitoral que apoiou Reagan em 79 era formada em grande parte de classes médias afluentes, indignadas com a perda de renda financeira oriunda da combinação entre inflação alta e juros baixos, prevalecente ao longo dos anos 70, sobretudo depois da débâcle do sistema de Bretton Woods.

 

Na Europa Ocidental, o que deixou apavoradas as classes médias afluentes foi principalmente a instabilidade monetária e cambial. O sucesso espetacular do experimento social-democrata do pós-guerra eliminou o medo do desemprego e mudou o eixo das preocupações dos afluentes para as oportunidades de ganho financeiro, no país de origem e no exterior, pelo que a instabilidade cambial passou a ser um estorvo. Aos poucos, a demanda de estabilidade dos ricos acabou por formar uma maioria eleitoral.

 

Pode-se dizer que, na Europa, o neoliberalismo é um produto da afluência da maioria. No Brasil, ao contrário, a afluência de uns poucos tem se tornado o produto do neoliberalismo. Diferentemente da Europa, não se completou aqui o processo da democracia social, e em compensação não houve entre nós nenhum episódio eleitoral que autorize dizer que a maioria dos cidadãos optou pelo neoliberalismo. No caso de Fernando Henrique, suas eleições se deveram exclusivamente ao sucesso do Real quanto ao controle da inflação. No caso de Lula, ao desencanto com Fernando Henrique e ao compromisso de retomada do desenvolvimento e da luta contra o desemprego.

 

Assim, no Brasil, o neoliberalismo é um fenômeno principalmente ideológico, sem base na realidade social, esta ainda fortemente dependente de ações do Estado. É uma ideologia artificial, importada, descolada do processo sociológico, mesmo porque estamos longe de ter uma maioria de afluentes que estejam mais interessados em globalização e oportunidades de especulação do que em combater o alto desemprego e a exclusão social. Como toda ideologia, funciona como instrumento de manipulação e de dominação. Contudo, para ser eficaz, ela busca desesperadamente o status de pensamento único.

 

No governo Fernando Henrique chegamos o mais próximo que se pode ao império do pensamento único. Todos os aparelhos ideológicos do Estado e quase todos os da sociedade, inclusive a maioria da grande mídia, foram colocados sem qualquer escrúpulo a serviço da difusão ideológica do neoliberalismo. Essa hegemonia foi quebrada no governo Lula. E é isso, certamente, que está suscitando uma forte inquietação nos círculos neoliberais, vocalizada especialmente por alguns professores-banqueiros.

 

Se o neoliberalismo no Brasil tivesse raízes sociológicas autênticas, os economistas Márcio Pochmann, presidente do IPEA, e João Sicsú, diretor, não se veriam sob o fogo cerrado dos seus militantes mais agressivos. Pochmann disse e escreveu que a CPMF, dada a regressividade do sistema tributário brasileiro, é um dos impostos mais eficazes e mais justos. Sicsú escreveu, sempre de forma absolutamente fundamentada, que o Estado brasileiro, ao contrário do que dizem, é “nanico”.

 

Tenham tido essa intenção ou não, meteram o dedo na ferida. A essência do neoliberalismo, desde Hayek a Friedman, é a desconstrução do Estado. O árbitro de todas as soluções, desde o meio ambiente ao emprego, é o livre mercado. Para Hayek, até a moeda teria de ser privada – algo que fez recuar, assustado, seu parceiro Friedman. Não foi o caso, porém, de nossos neoliberais. Estes conseguiram a façanha inacreditável de privatizar o Banco Central, o que valeu a seu presidente uma honraria da “Euromoney”.

 

Pedro Malan (ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda, hoje Unibanco), Alexandre Schwartsman (ex-diretor do Banco Central, hoje no Real), Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica da Fazenda, hoje no Unibanco), Maílson da Nobre (ex-ministro da Fazenda, hoje dono de consultoria financeira), todos se insurgem diante da ousadia de Pochmann e de Sicsú ao apontarem, por exemplo, que enquanto o número de servidores públicos no Brasil representa 8% do total do emprego, nos Estados Unidos é 17%, na França, 27% , e nos países nórdicos europeus, em torno de 40%.

 

A administração pública direta está esgarçada. Do Ministério de Transportes ao Ministério do Meio Ambiente, não há gente para funções essenciais. Não temos fiscais sequer para supervisionar a produção de leite. Na rede estadual do estado do Rio, estima-se que faltam 30 mil professores de ensino médio. O que dizer dos outros?  São notórias as deficiências de pessoal em toda a área pública de Educação, de Saúde, de Segurança Pública. Pacientes brasileiros têm recorrido à rede de saúde da Bolívia! Sucateamos nosso sistema de Defesa, e liquidamos com nossa infra-estrutura logística, a qual só começa a ser recuperada no segundo governo Lula.

 

Diante desse quadro de descalabro, vêm esses manipuladores de estatística dizer que o grande mal do Brasil é o aumento dos gastos públicos primários! Charlatães, omitem os juros. Shwartzman vai além. Para provar sua tese, faz uma série histórica de aumento da carga tributária entre 1994 e 2006 que simplesmente salta o período de governo de Fernando Henrique. Omite que foi justamente nesse governo que a carga tributária e a dívida pública explodiram, esta de 30% para quase 60% do PIB – sem qualquer relação, como afirma o vice-presidente Alencar, com o investimento público e até mesmo com gastos correntes. Tudo para pagar juros sobre juros!

 

Não tenho espaço para examinar detidamente cada artigo desse quarteto. Mas, como disse Galbraith, não se pode levar a sério opinião sobre economia de quem tem interesses próprios em jogo. E esses professores-banqueiros valem para seus bancos tanto pelo que omitem quanto pelo que expressam. Vejam as operações de swap reverso do Banco Central, cuja independência é tanto exaltada por Maílson da Nóbrega. Como posso esperar opinião independente de professores-banqueiros que certamente estão entre os beneficiários diretos dos R$ 30 bilhões que, desde 2005, o BC doou e continua doando graciosamente ao “mercado” nessas operações?

 

A cabeça de Medusa tem muitas serpentes, mas a cabeça da Medusa neoliberal tem serpentes de ouro. Sua infinita audácia, no Brasil, nada tem a ver com sua propensão a ganhar dinheiro e acumular fortunas individuais. Ela vai além disso. Consiste em tentar fazer com que os outros pensem que o interesse pessoal deles é o interesse da sociedade. O resultado disso é que, na média dos anos 1993 a 2005, os juros representaram 29% da renda interna disponível. Num desses anos, foi a 44%! É um escândalo, e um escárnio. Mas é, indiscutivelmente, o principal resultado prático do neoliberalismo no Brasil.

 

P.S.: Já estava escrito este artigo quando li em manchete de primeira página de “O Globo”, mais tarde replicada no Jornal Nacional, que Pochmann será convocado pelo líder tucano no Senado para dar satisfação do afastamento de quatro pesquisadores que se encontravam irregularmente desempenhando funções no IPEA. Lúcia Hipólito, que o próprio jornal laureou como grande cientista política, sustenta que aí estaria a prova de que o IPEA está sendo “aparelhado”. Pergunto: Por quem, e com que objetivo?

 

Não é exatamente o oposto? Ao tempo de Fernando Henrique, e mesmo depois, enquanto o governo Lula estava preocupado com outras coisas, não foi o IPEA, pelo trabalho ideológico de alguns de seus integrantes (emprestados) mais atrevidos, um instrumento do neoliberalismo incrustado no governo, vocalizador do pensamento único deste? Não é desse grupo ideológico “independente” que surgiram os textos “provando” que o Estado brasileiro é gastador, e que é do dispêndio público exagerado que resultam todos os males nacionais – sem uma única menção aos juros e à política monetária?

 

Não foi um desses pesquisadores que quis “provar” que no Brasil não há trabalho escravo? Obviamente, nenhum desses fâmulos neoliberais, que por certo estão contando pontos para saltar para consultorias privadas, foi afastado pelo que pensam. Foram afastados pela ilegalidade de sua posição. Se isso desagrada os neoliberais da grande mídia e do Congresso, paciência. Não existe nenhuma razão para que o governo abrigue em seu importante instituto de formulação de política de longo prazo os que querem trocar os gastos públicos necessários pelas receitas privadas de consultoria e de palestras regiamente pagas. 

 

 

José Carlos de Assis é economista. - Originalmente publicado em www.desempregozero.org.br

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