Correio da Cidadania

A LIT, o impeachment e a luta contra o governo Temer

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Sob o título Impeachment de Dilma: ‘não chores por mim, Brasil Alejandro Iturbe publica um interessante artigo justificando a política da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional  (LIT-QI) – e do PSTU diante da recente crise política do Brasil e do afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência, assumindo no seu lugar Michel Temer, do PMDB. Num momento em que as polêmicas chegaram ao rubro no Brasil e que há diferenças entre correntes de esquerda de tal forma extremadas que tornam o diálogo praticamente impossível, creio ser de saudar um artigo como o de Iturbe, que procura discutir no terreno das ideias, das análises e caracterizações das políticas. O artigo foi publicado em castelhano e ainda não tem versão em português. Assim, tomei a liberdade de traduzir as passagens citadas.

 

Militante português, vivi 17 anos no Brasil, nos quais militei sempre na LIT (da qual atualmente estou afastado), e mesmo de regresso a Portugal nunca parei de acompanhar a política brasileira. Tenho escrito algumas análises sobre o tema, publicadas no Esquerda.net e no Correio da Cidadania, sempre observando alguma prudência e principalmente evitando polêmicas. Desta vez, porém, senti que há condições de confrontar a minha visão com a do dirigente da LIT (a quem me une uma relação de amizade) de forma fraternal, procurando esclarecer posições e sempre em busca da verdade. Tento aproveitar a vantagem de não estar atualmente alinhado com nenhuma das correntes da esquerda brasileira, nem ter participado dos debates apaixonados que ocorreram recentemente no interior da LIT.

 

“Materialidades” evitadas

 

O centro do artigo de Iturbe é polemizar com a esquerda não petista, que teria caído no discurso produzido pelo PT, através de “um certo número de procedimentos, que têm por função esquivar a pesada e terrível materialidade” dos fatos, usando o autor as palavras de Michel Foucault. Na opinião do dirigente da LIT, o problema principal desta esquerda, que não comemorou a derrubada de Dilma, é usar um método errado de definir a correlação de forças entre as classes sociais, só considerando os fatores superestruturais e não a luta de classes.

 

Para Iturbe, “desde as grandes mobilizações de junho de 2013 o regime de dominação da burguesia brasileira mostra profundos elementos de crise”; desde essa data “existe um processo de aumento considerável do número de greves e de conflitos”, e “este fato (a luta das massas) se vê acompanhado por um dos elementos mais progressivos e positivos da realidade: a ruptura dos trabalhadores e das massas com o PT e a sua política de conciliação de classes com a burguesia e o imperialismo”. Mais: o autor considera que o governo de Temer é mais fraco que o de Dilma, e por isso o “tom sombrio” da esquerda não petista, que não comemorou o impeachment, serve apenas de “dique de contenção e de travão na construção de uma alternativa revolucionária que os trabalhadores precisam”.

 

Fatos ignorados

 

O problema desta análise aqui resumida é que cai exatamente no mesmo erro de que acusa os seus antagonistas. Iturbe produz um discurso que, para nos mantermos na citação de Foucault, “tem por função esquivar a pesada e terrível materialidade” dos fatos. Que fatos são esses?

 

São as manifestações contra Dilma dirigidas pela direita e a extrema-direita que pavimentaram o caminho para este desenlace final. Não estamos falando de fatos insignificantes.

 

Recordemos: no dia 13 de março deste ano ocorreram 300 manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff e contra a corrupção, que terão totalizado 3,6 milhões de participantes. A de São Paulo teve, segundo o DataFolha, a presença de meio milhão de pessoas, superando a maior manifestação ocorrida nos anos 80 pelas Diretas Já. Estas mobilizações culminaram numa série de protestos anticorrupção e pelo “Fora Dilma” ocorridos em 2015: em 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto e 13 de dezembro - com a participação de, respetivamente, no Brasil 2 milhões, 660 mil, 790 mil e 60 mil pessoas; e 210 mil, 100 mil, 135 mil e 40 mil pessoas na capital de paulista.

 

Nenhuma continuidade com junho de 2013

 

Pela análise de Iturbe, parece haver uma continuidade da ruptura das massas com o governo do PT desde as mobilizações de junho de 2013 e as de 2015 e de 2016 (que em nenhum momento do artigo são citadas). Nada mais errado: nem pelos seus objetivos, nem pela sua composição de classes, se pode pôr um sinal de igualdade entre as grandes mobilizações contra o aumento das passagens de ônibus de junho de 2013 e as pelo impeachment de Dilma. Estas últimas tiveram direções ostensivamente de direita, como o chamado  Movimento Brasil Livre (MBL), fundado “para promover as respostas do livre mercado para os problemas do país", ou os Revoltados Online; contaram com o apoio dos partidos da direita e tiveram a participação da extrema-direita organizada em torno do deputado Jair Bolsonaro.

 

Embora o que levou muita gente às manifestações foi o legítimo sentimento contra a corrupção, o fato é que essas pessoas tinham uma visão pouco equânime deste fenômeno, já que apenas denunciavam os casos de corrupção envolvendo o PT, deixando de lado os de governadores do PSDB ou mesmo o escândalo do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. E estes mesmos manifestantes conviveram sem problemas com cartazes que tinham inscrições como: “o povo é soberano! Intervenção militar não é crime!”; “por que não mataram todos em 1964?”; e ainda “Dilma, pena que não te enforcaram no DOI-CODI”, só para dar alguns exemplos.

 

Quanto à sua composição social, foi visível até para os mais distraídos que as mobilizações pelo impeachment eram quase totalmente brancas, majoritariamente das classes média e alta, e com grande participação de pessoas mais velhas. Isso mesmo foi confirmado pelo DataFolha, que pesquisou a manifestação de 16 de agosto de 2015, verificando que 50% dos manifestantes ganhavam de cerca de 1000 euros a cerca de 4000 euros; 17% ganhavam ainda mais.

 

Todo o oposto das mobilizações de junho de 2013, majoritariamente de jovens, proletários e representavam a diversidade racial do Brasil.

 

Que “massas”?

 

Estas manifestações de 2015 e de março de 2016 são fatos indesmentíveis. Se não são sequer mencionados no discurso de Iturbe, fica evidente que se trata de “materialidades” que o incomodam e tenta evitar.

 

Mais: para se fazer uma boa análise da correlação de forças não basta dizer que “as massas” romperam com o governo Dilma. É preciso ver que massas são essas e qual o seu comportamento. Nas massas há classe média, ou pequena burguesia, e classe operária, ou classe trabalhadora (não está no âmbito deste artigo entrar na discussão sobre a definição destes conceitos). Olhando para as manifestações pró-impeachment, fica evidente que elas mobilizaram essencialmente a classe média, polarizada pela direita e pela extrema-direita. E, se é verdade que terá havido uma ruptura da classe operária, pelo menos parcial, com o governo do PT (parcial, porque Lula ainda mantém cerca de 20% das intenções de voto), o certo é que os batalhões operários organizados não se mobilizaram nem pelo impeachment, nem a favor de Dilma.

 

É certo que a base social do governo Dilma ficou muito reduzida e esse foi o motivo principal da vitória do impeachment; mas também é verdade que a direita que aprovou na Câmara e no Senado o impeachment não se limitava a ser um fenômeno parlamentar-superestrutural, mas estava assentada numa base social que a fortaleceu – tinha ganho inequivocamente a batalha das ruas.

 

Assim, a classe dominante decidiu levar o impeachment até o fim porque pretende aplicar o ajuste fiscal, a reforma trabalhista, a reforma previdenciária e as privatizações a um ritmo mais forte e rápido do que o governo Dilma estava disposto a fazer. Mas também tomou essa decisão porque o PT no governo deixara de lhe ser útil, ao ter perdido a hegemonia das ruas. Melhor um governo “puro-sangue”, raciocinaram.

 

Voltando à correlação de forças: uma análise das classes que intervieram no processo que levou ao fim do governo Dilma mostra-nos que a classe média e média-alta se mobilizou sob a direção da direita pelo impeachment, e a classe operária não defendeu o governo do PT, mas ficou passiva, expectante, não participando das manifestações pró-impeachment e tampouco nas que o PT convocou para defender Dilma. Ora, isto não conforma uma correlação de forças favorável a ponto de levar os militantes da esquerda não petista a comemorar a queda do governo Dilma. Outra atitude teriam se tivesse sido a classe trabalhadora a derrubar o governo do PT. Da forma como o impeachment ocorreu, aquele 31 de agosto de 2016 também foi um dia sombrio para mim.

 

Depois de Temer, a tomada do poder?

 

Isto não quer dizer que a classe trabalhadora esteja derrotada. Não creio nisso. Mas a esquerda que quer construir uma alternativa política que retire as lições da desastrosa experiência dos governos do PT e se apresente às massas com uma bandeira impoluta não pode ter ilusões de que à sua frente está uma autoestrada para o socialismo.

 

Pode ser que esteja a tirar ilações erradas, mas a forma como Iturbe termina o seu artigo parece-me ir neste sentido. O dirigente da LIT começa por concordar que agora o foco é lutar contra as medidas do governo e pelo “Fora Temer” e que, nesse contexto, o PSTU impulsiona toda a luta, dando o exemplo da jornada de lutas das centrais sindicais de dia 16 de agosto ou a luta contra as demissões na Mercedes. Pondera, porém, que quer a luta a sério e por isso propõe a greve geral. A partir daqui, apresenta uma estratégia que não pode ser vista de outra forma senão como a da tomada do poder a breve trecho.

 

Diz o seguinte: “a luta contra o governo Temer e as suas medidas deve enquadrar-se na perspectiva de uma estratégia muito mais ofensiva: a tomada do poder pelos trabalhadores e as massas. Quer dizer, não só a derrota do governo Temer como também do conjunto deste regime corrupto e putrefato a serviço do capitalismo, para instalar um novo regime (sobre a base de instituições completamente diferentes) e iniciar a construção de um novo tipo de Estado, a serviço dos trabalhadores e das massas. Isto é, a perspectiva estratégica da revolução socialista”.

 

Repare-se que Iturbe não se refere aqui a uma atividade de propaganda do socialismo, da construção de um novo Estado, baseado em instituições da democracia operária etc., propaganda essa que é sempre bem vinda. O que ele propõe não é propaganda – é ação. Ao contrário da esquerda “sombria e triste”, o dirigente da LIT coloca a tomada do poder e a revolução socialista como uma perspectiva de curto prazo, baseado na sua análise de uma correlação de forças muito favorável.

 

Militei mais de 25 anos na LIT, mas nunca tinha visto a perspectiva da tomada do poder ser colocada desta forma (exceto durante um curto período, na Argentina, que antecedeu justamente a explosão da LIT nos anos 90), o que me leva a crer que há uma nova elaboração teórica e programática que desconheço, mas muito diferente da dos tempos de Moreno.

 

Manifestações “Fora Temer” são em defesa da ex-presidente?

 

Talvez seja então esta política triunfalista que explique a posição mais recente do PSTU, assumida no mesmo dia da publicação do artigo que vimos referindo: a de se recusar a participar das mobilizações contra o governo Temer, algumas espontâneas e inclusive particularmente jovens, que se sucedem desde o dia do impeachment. Em nota oficial, o PSTU condena a repressão que se abateu sobre estas manifestações, mas aproveita para esclarecer que as considera todas “manifestações em defesa da ex-presidente e contra um suposto golpe”.

 

Esclarece: “não apoiamos tais manifestações, tampouco acreditamos que houve um golpe no país”. E para não ficarem dúvidas, sublinha adiante: “não concordamos e não participaremos de manifestações que defendem um ex-governo que nada mais foi do que a antessala do atual governo do PMDB, que atacou os trabalhadores e deixou preparados todos os ataques que o atual governo vem fazendo”.

 

Ora, acontece que estes atos foram convocados contra Temer, que é o governo atual; a polêmica do “golpe-não golpe-golpe palaciano-manobra parlamentar” pode ter sido muito importante, mas já não faz sentido; já nem o PT quer que Dilma regresse, nem mesmo ela considera ter condições de prosseguir. O governo Dilma é uma página virada na história. De onde foram, portanto, tirar que as manifestações são pelo regresso de Dilma?

 

É evidente que poderá haver setores pró-Dilma nestas manifestações, mas são minoritários. Ainda que não fossem, não seria dever dos revolucionários lutar para que tais atos se massifiquem e disputar a sua direção para se tornarem em atos realmente “Fora Temer”? A LIT que eu conhecia teria feito isso, sem dúvida.

 

Mas não: os militantes do PSTU ficaram em casa neste domingo, dia 4 de setembro, quando cerca de cem mil pessoas foram se manifestar para a avenida Paulista contra Temer, que atacara as manifestações dizendo que “não passavam de 40 pessoas quebrando carros”. Foi a maior manifestação de esquerda dos últimos anos e o PSTU não esteve presente. É este o caminho para a tomada do poder e a revolução socialista? É com esta política que a LIT pretende superar o “dique de contenção e de travão na construção de uma alternativa revolucionária que os trabalhadores precisam”? Na minha opinião, o resultado será o desastre. Quem viver, verá.

 

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Luis Leiria é jornalista do Esquerda.net.

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