Correio da Cidadania

Ecos da ditadura no século 21

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Vivemos um momento complexo na América Latina. Os não tão antigos anos da ditadura militar vividos em grande parte de nosso continente entre os 1960-1980 se mostram presentes, como resultado de velhas práticas que se renovam com o fim de manutenção da ordem do capital.

 

No teor de educar oprimindo, os mentores ideológicos do capital tendem a tingir de vermelho tudo o que conspira contra a ordem, se autodenominam defensores da paz, ainda que em meio às mais obscuras violências cotidianas.

 

A ditadura fez escola e forjou a reprodução da opressão no interior da classe trabalhadora. Como resultado da ideia de modernidade, muitos foram os partidos políticos ditos de esquerda que se vincularam às teses do desenvolvimento. Confusão que, no passado e no presente, explicita diferenças de processos, objetiva divergências e expõe discrepâncias de princípios.

 

No tom das diferentes nuances da consciência de classe, assume-se como vermelho uma ampla gama de sujeitos políticos que passa pelos que contestam a ordem e chega aos que lutam pela superação da lógica do capital. Desta confusão entre o sentido de esquerda, fluem complexas situações que fazem o todo pagar por uma parte realmente distante de suas crenças e proposições. A narrativa de esquerda disseminada pelo PT e por seus rivais projetou para a esquerda anos difíceis na recomposição do projeto popular para o país.

 

As cores da ditadura

 

No período de ditadura marcado por mordaças e matanças dos sujeitos que contestavam a ordem, qualquer pergunta ou franzir das testas culminava na consolidação do estereótipo de perigoso. O comportamento habitual do progresso era a lei do silêncio. Através dela se moviam os mundos dos mandatários do capital com incidência sobre o mundo do trabalho.

 

A ideia do branco da paz do capital instituiu, na ditadura, a cremação cinza sobre os contestadores pintados pelos ditadores como possíveis conspiradores vermelhos. O capital dá o tom da tortura ainda quando induz uma ideia equivocada de paz e ordem para o progresso. De suas ações jorram sangues e consolidam-se concretos muros cinzas de preconceitos.

 

O importante era forjar no imaginário coletivo tanto a ideia de progresso do capital como a leitura do inimigo, de cor vermelha, a ser combatido. O combate aos sujeitos da cor vermelha expressava a razão ditadora da defesa do progresso, situação que instituía as opressões capazes de conter os estereótipos da desordem. Pretos/pretas, homossexuais, camponeses/camponesas, trabalhadores das periferias, mulheres mães solteiras, artistas de rua, intelectuais, religiosos e sujeitos políticos de partidos entravam nesta caracterização.

 

Ainda que os sujeitos não fossem comunistas, eram tratados como criminosos do mesmo tom. Situação sobre a qual tanto os mandatários do capital como a sociedade deviam perseguir, combater, extirpar. Nessa estratégia de limpeza comunista o opressor foi transformando o oprimido em um corpo nada dócil, capaz de torturar os seus, caso não se adequassem à ordem a ser realizada.

 

O opressor travestido de oprimido

 

A opressão no século 21, ao tirar de foco a história violenta do capital, coloca em evidência temas sem explicitar os sujeitos políticos da ação devastadora e os verdadeiros tons correspondentes à sua ação. O que ocultam é que por trás da ideia de paz apresentavam-se diversas balas em tons de cinza frutos de atos sombrios do capital.

 

O problema é que nas crises o número de vermelhos tende a aumentar. Se vermelhos são entendidos como os que gritam e se perguntam porque vivem na miséria que vivem. A ruptura com o silêncio é suficiente para ampliar o campo dos desordeiros, segundo a ótica do capital.

 

Imersos na confusão estabelecida pela pintura aparente de vermelho orientada à reprodução obscura do capital, a história do PT no poder projeta o exílio forçado para a esquerda que recebe como pena a desarticulação da classe, ainda quando esta tente explicitar, por diversos meios, a centralidade do PT para a ordem do capital.

 

A força ideológica da projeção de um sonho a ser sonhado por todos e realizado por poucos é o que permite ao opressor seguir forte. O opressor conserva as amarras que prendem o oprimido a sua condição realizadora de sonho. O opressor conduz o tempo de trabalho como matriz de seus ganhos.

 

O oprimido, quanto mais se submete a um tempo acelerado de ganhos menores, menos tempo tem para entender o que realmente ocorre. E mais sonhos projeta, com a ajuda da mídia, de pertencer à orgia consumista de um mundo mágico feito para poucos, mas com capilaridade absurda sobre os desejos de muitos.

 

Através das ilusões opressoras, parte expressiva da suposta esquerda que chegou ao poder no Brasil não sonhava algo diferente da realização do capital. Essa esquerda fetichizada, originada dos ideários do progresso capitalista, foi apresentada e se autopromoveu como pertencente ao vermelho, quando em realidade reproduzia a lógica cinza do progresso.

 

Para o PT e seus defensores, a reforma substituía a revolução e a modernidade suprimia a proposta de superação da ordem do capital. O combate à pobreza dava, assim, a tônica da manutenção da desigualdade estrutural.

 

A opressão ganhava novos mandatários para velhas técnicas de realização do poder sobre os oprimidos. Parte dos protagonistas políticos atuais é fruto daquelas gerações que nos anos 1960-1980 viviam cenários duros sobre a realização do progresso. Filhos dos operários ou intelectuais do progresso, se contentam em ser meros reprodutores da ordem imperante e mandam para o exílio os representantes dos tons de vermelho mais duros.

 

O passado das ditaduras, ao se fazer presente, demonstra que parte da geração vermelha foi forjada em tons obscuros de cinza. Violentos tons que produzem múltiplas desigualdades ao retirarem do horizonte o sentido de revolução manifesto nas ideias e ações comunistas. Os trabalhadores tragam a sujeira emanada dos carburadores, comem alimentos com agrotóxicos e adoecem como resultado de uma sociedade que não tem outro sentido senão o da doença.

 

O preço a ser pago pelos que defendemos um projeto popular é muito alto, como resultado da propaganda discursiva que atrela o PT à esquerda. As propagandas midiáticas do PT demonstram a retirada do vermelho e a defesa da ideia pacifista do branco. Aproximação real ao ilusório discurso de paz do capital. Infelizmente, anos de educação opressora provocam distorções sobre a vida concreta. Isto, aliado à intencional projeção do capital, torna as coisas ainda mais difíceis para os defensores do projeto popular.

 

O período petista provocou um recuo tático de décadas na recomposição popular com perspectiva de classe, em meio a muito sangue e suor da classe trabalhadora brasileira. As conservadoras vozes da ditadura insistem em reafirmar-se entre nós.

 

Os ecos da opressão querem seguir com torturas, criminalizações e exílios com relação às lutas e aos lutadores populares. Os gritos dos que se contrapõem se fazem fortes e presentes. Basta uma recomposição que os faça ecoar em um único tom na sinfonia da luta organizada pela classe trabalhadora. Tratar temas doloridos como este não significa defender a direita, nem tampouco reforçar o golpe e, sim, explicitar que o problema é muito mais denso do que temos ousado discutir.

 

 

Roberta Traspadini é professora da Universidade Federal da Integração Latino-americana.

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