Correio da Cidadania

Cuidado com a virose infantil

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Na história das lutas sociais e políticas, nos mais variados países do mundo, têm sido frequentes, diante de derrotas sérias, táticas ou estratégicas, que as forças políticas populares sejam acometidas por doenças políticas, em geral cunhadas como “doença infantil do esquerdismo”. Como as viroses estão na moda, podemos chamá-las de “virose infantil do esquerdismo”.

 

Um dos aspectos interessantes dessa virose é que ela costuma atacar principalmente, e de forma mais intensa e, às vezes, letal, justamente aqueles que, no processo que levou à derrota tática ou estratégica, haviam adotado políticas direitistas. No Brasil temos um caso clássico, nem sempre avaliado nesse aspecto.

 

Nos anos 1950 e até 1964, a hegemonia das forças políticas de esquerda era exercida pelo PCB. Sua estratégia consistia em realizar uma aliança estratégica com a “burguesia nacional”, para superar os principais entraves à “modernização” do país: o latifúndio e a dependência ao imperialismo.

 

A esmagadora maioria dos dirigentes e militantes do PCB acreditava que a burguesia nacional era “revolucionária”. Além disso, afirmava que as forças armadas tinham uma “tradição democrática” e não se colocariam contra as “reformas de base”, propostas para superar aqueles entraves. O golpe militar de 1964, porém, representou uma brutal derrota estratégica, tanto para o PCB quanto para a esquerda em geral.

 

Enquanto a resposta de grande parte da direção do PCB foi simplesmente capitular, a resposta de muitos outros dos mais destacados dirigentes da “direita” daquele partido foi escorregar celeremente para a formação de agrupamentos “esquerdistas”. Eles passaram a defender não apenas políticas de tipo “blanquista” (“quem sabe faz a hora”, “a militância arrasta a massa”), mas também formas de luta que podiam “animar a militância”, mas certamente afastavam as camadas populares das ações de massa de resistência à ditadura. Os resultados são conhecidos.

 

No momento presente há indícios de que algo parecido pode estar ocorrendo. Destacados dirigentes da “direita” do PT, que ainda mantêm certa hegemonia no conjunto da esquerda, e foram responsáveis pela estratégia política que substituiu totalmente a luta social pela disputa e conciliação institucional, na esperança de eliminar a pobreza sem a necessidade de realizar rupturas econômicas, sociais e políticas, dão sinais de que estão sendo acometidos pelo “vírus infantil do esquerdismo”.

 

Ao invés de reconhecerem que a estratégia política que impuseram ao PT é a responsável pelos erros econômicos e políticos de condução do partido e do governo, abrindo brechas para a ofensiva da direita conservadora e reacionária, e para a eclosão da crise econômica e política em que o país se encontra, operam no sentido de “animar” a militância com propostas de ações que, ao invés de mobilizarem as camadas populares e médias, tendem a afastá-las.

 

É verdade que, diferentemente de 1964, a unidade de diferentes forças de esquerda e de centro em defesa da subordinação ao resultado das urnas, dos direitos democráticos e sociais da Constituição de 1988, e pela mudança da política econômica, pode contribuir para corrigir a errônea estratégia até então seguida pelo PT e evitar que a derrota seja desastrosa.

 

No entanto, também é verdade que aqueles que estão sendo acometidos pelo vírus infantil do esquerdismo podem isolar as esquerdas das grandes massas da população e dar justificativas à direita reacionária para golpear mais fortemente os direitos democráticos e sociais.

 

Quando vejo e ouço o presidente da confederação nacional dos trabalhadores agrícolas anunciando invasões de propriedades rurais, sejam ou não latifúndios improdutivos, apenas como retaliação ao golpe parlamentar, me vem à memória os discursos de um certo cabo, em 1964, incitando marinheiros a desobedecer as ordens dos oficiais, como se a revolução já estivesse na ordem do dia.

 

Quando vejo ruas, avenidas e estradas serem bloqueadas me pergunto que efeito isso tem sobre as camadas médias que comandam os veículos particulares e sobre as camadas populares que utilizam os transportes públicos como meio de se dirigirem ao trabalho.

 

Em ambos os casos, tais ações podem “animar” a militância, mas auxiliam a direita a isolar a esquerda das camadas populares e médias e dar pretextos a ações militares repressivas. O que me leva a crer que a luta contra a “virose infantil do esquerdismo” passou a ser um item importante da atual defensiva estratégica da esquerda.

 

Passar à defensiva estratégica, ou mesmo ser obrigado a realizar uma retirada estratégica, é uma operação política que exige pouca ou nenhuma aventura, muita determinação e espírito autocrítico, e muito esforço de reformulação estratégica e tática. Algo que é impossível realizar se as direções da esquerda estiverem acometidas por aquela virose infantil.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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