Correio da Cidadania

O alicate político e ecológico das mudanças climáticas oprime os povos indígenas

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A problemática das mudanças climáticas impõe enormes problemas e riscos para os povos indígenas sul-americanos. Isto ocorre em distintos níveis, desde impactos locais pela imposição de extrativismos que geram gases do efeito estufa, a padecer os efeitos nas mudanças do clima, como podem ser episódios de inundações ou secas. Por sua vez, há condições políticas cada vez mais duras, com a volta da repressão em alguns países ou a intromissão governamental para dividir as organizações indígenas. Esses são os dois braços de um enorme alicate, ecológico e político, que exerce pressão sobre os povos indígenas.

 

O braço ecológico: impactos ambientais vinculados às mudanças climáticas

 

As comunidades indígenas sofrem uma variedade de impactos ambientais diretamente vinculados às mudanças climáticas. A partir das causas é necessário entender dois processos. Um é o desflorestamento e as mudanças na utilização do solo, como ocorre no avanço da agricultura e pecuária bovina. Muitas vezes isto passa desapercebido, mas em países como o Peru, a Bolívia ou o Equador é a principal fonte de gases que alimentam as mudanças climáticas. Por sua vez, essa deterioração ambiental afeta os territórios e a qualidade de vida indígenas; destroem-se os ambientes originais que sustentam muitas comunidades ou se perdem as práticas agrícolas próprias.

 

Outro fator é a extração de hidrocarbonetos, que com sorte serão queimados quase em outros países, de onde contribuirão com a mudança climática, mas têm graves efeitos locais. Esses poços de petróleo ou gás desencadeiam impactos locais, como a expulsão de indígenas de um determinado território ou mesmo a contaminação da água e do solo desses lugares e comunidades.

 

Mas também existem impactos sobre os indígenas como consequência das mudanças climáticas. Estão em marcha alterações climáticas, com alterações nos ciclos de chuvas ou na duração de períodos secos, no vai-e-vem entre ondas de frio e calor, e inclusive no desencadeamento de catástrofes naturais (como podem ser as inundações). Muitos destes problemas afetam diretamente comunidades indígenas, às vezes de maneira insidiosa, como pode ser a perda de animais ou colheitas pela seca, e em outras ocasiões de forma repentina e violenta, como sucede com as inundações. As comunidades indígenas têm menos recursos para enfrentar essa variação climática ou catástrofes e, quando ocorrem, as comunidades tardam em se recuperar.

 

Tais tipos de impactos ocorrem em todo o continente e ninguém escapa deles. Alguns territórios indígenas estão duplamente afetados, tanto pelos impactos locais que alimentam os gases de efeito estufa, como se dá com a chegada petroleira, como por efeitos de variação climática. É evidente, por exemplo, em zonas de exportação de hidrocarbonetos na Bolívia, onde as comunidades indígenas têm de lidar simultaneamente com a contaminação petroleira e eventos de secas ou inundações.

 

O braço político: restrições, intimidações e criminalizações

 

Para enfrentar essa complexa situação ecológica, os povos indígenas necessitam de certas condições políticas. Elas devem ir desde a proteção dos seus direitos à implementação de mecanismos de informação e consulta, com respeito à sua autonomia e organizações próprias. Como eles são os mais afetados, necessitam deste tipo de condições para poder fazer com que suas vozes sejam ouvidas, possam proteger seus territórios e participar sob condições de igualdade em debates políticos nacionais e internacionais.

 

Contudo, a situação atual que se observa na América do Sul é quase a oposta. Estamos diante do outro braço do alicate sobre os povos indígenas: se esconde informação ou quando se publica é de uma maneira ininteligível, não se respeitam as decisões locais, impondo-se os extrativismos dentro de seus territórios, e quando isso desencadeia uma compreensível reação, apela-se para a criminalização ou para a repressão.

 

Governo, empresários e muitos acadêmicos defendem tais extrativismos apelando a desqualificações dos indígenas, expondo-os como ignorantes que impedem o progresso. Ou, quando muito, insistem em justificar a chegada das petroleiras ou a expansão agrícola prometendo ou brindando compensações econômicas, convertidas em uma furada de mercantilizações que penetram pouco a pouco dentro das cosmovisões indígenas. Estes casos nos rodeiam, e apenas como exemplos, ali estão no Peru os “pacotaços” ambientais ou o debate sobre a extração petroleira em Loreto.

 

Poderão dizer que muitos desses problemas têm uma larga história e não há nada novo em apontá-los. Mas também é possível argumentar que em alguns casos há um agravamento da situação, já que estão voltando a criminalização e a repressão, e de um flanco inesperado: os governos progressistas.

 

Recordemos que alguns governos progressistas, como os de Lula no Brasil e Hugo Chávez na Venezuela, prometeram um novo relacionamento com os povos indígenas. Compromissos desse tipo foram muito mais fortes com Rafael Correa no Equador e por isso recebeu uns quantos apoios iniciais das organizações indígenas. Seguramente os apoios mais intensos ocorreram com Evo Morales na Bolívia, que inclusive se apresentou como “presidente indígena” e liderando um “governo para os indígenas”.

 

Portanto, se esperava desses Estados que respeitassem e escutassem os povos indígenas, contribuíssem com o fortalecimento de seus organizadores, o que significa promover sua autonomia, e atuassem para melhorar suas condições de vida. Importantes avanços, como os Direitos da Natureza ou da Mãe Terra, ou o conceito do bem-viver, sem dúvida servem tanto para enfrentar as mudanças climáticas como para respeitar seus territórios e ideias.

 

Tais compromissos obrigam, sem dúvida, a reduzir drasticamente as emissões nacionais de gases de efeito estufa devidas ao desflorestamento ou o congelamento da exploração petroleira na Amazônia. Se se aplicam medidas desse tipo, não só atacariam as mudanças climáticas como favoreceriam melhores condições de vida para os povos indígenas e assegurariam a integridade de seus territórios.

 

Todos esses ditos ambientalistas não estão se cumprindo, enquanto as opções de participação política dos povos indígenas seguem deteriorando-se. Tudo isso já foi denunciado pelas organizações indígenas no marco da Cúpula Sobre Mudanças Climáticas, em Lima (dezembro de 2015). (1)

 

As promessas não estão sendo cumpridas e aprofundam-se as restrições políticas sobre os povos indígenas. Fortalece-se, assim, o braço político do alicate que oprime as nações originárias. Os dois componentes, o ecológico e o político, pressionam especialmente sobre as comunidades locais, e elas não têm escapatória.

 

O alicate boliviano

 

A situação boliviana ilustra a problemática e é importante analisá-la diante do convite do governo a uma nova “Cúpula dos Povos” sobre mudanças climáticas e direitos da Mãe Terra.

 

Os discursos do governo de Evo Morales aludem à Pacha Mama e denunciam as mudanças climáticas globais, e isso é muito positivo. Todavia, dentro do país foi decidido aumentar a exportação petroleira e amparar certos tipos de agropecuária com efeitos ecológicos negativos sobre as comunidades indígenas. Foram aprovadas medidas que liberam a exploração petroleira dentro das áreas protegidas (em muitas das quais vivem comunidades indígenas), recortam direitos indígenas e minimizam as vozes de alerta. E mais, ali onde surgiu o bloqueio de indígenas guaranis ao ingresso das petroleiras, foi aplicada a repressão policial (2).

 

O governo boliviano critica o capitalismo global, mas anunciou um plano de apoio aos investimentos em exploração petroleira de mais de 3,5 bilhões de dólares, uma típica medida capitalista que as corporações apreciam. Essa enorme cifra de dinheiro, ademais, mostra que existem recursos econômicos que, lamentavelmente, em vez de serem aplicados na promoção de alternativas produtivas ou energéticas são usados para aprofundar os extrativismos.

 

Na Bolívia as ações governamentais de penetração dentro dos mundos indígenas se calaram profundamente. O governo alterna o apoio a organizadores e líderes indígenas afeitos aos seus planos com intimidação e castigos àqueles que se opõem. Chegou-se a uma situação onde as duas grandes federações indígenas estão divididas e por isso há uma CONAMAQ (Congresso Amazônico de Aquicultura) oficialista e outra independente, e da mesma maneira uma CIDOB (Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia) alinhada com o governo e outra autônoma (3). Prometem-se compensações econômicas àquelas comunidades que aceitem o ingresso dos extrativismos e fazem pressões sobre as que resistem.

 

Também foi lançada uma campanha contra muitas ONGs, várias das quais apoiaram solidariamente as reivindicações indígenas. Não é algo novo, porque muitas delas foram atacadas por apoiar a marcha indígena em defesa do TIPNIS. Mas agora se impuseram medidas de funcionamento mais restritivas, 38 delas foram declaradas “irregulares” e anuncia-se uma medida similar para outras 290 ONGs (4).

 

Finalmente, o governo insiste em promover as compensações econômicas como meio para justificar os extrativismos. Isto pode ser resumido na ideia de “te contamino, mas te pago por isso”. Esses conceitos penetram pouco a pouco no seio das comunidades, inclusive dentro das famílias. Muitos as aceitam, e é compreensível ali onde as condições de pobreza e escassez têm uma larga história. Mas são medidas de alto custo, já que com elas aceitam-se que os danos a territórios, à saúde e à vida tradicional possam ser compensados com dinheiro. Abrem-se as portas a uma forma de pensar e sentir demarcada pelo dinheiro, uma racionalidade mercantil, que penetra nas cosmovisões indígenas.

 

É evidente que o pagamento em dinheiro não devolve vida aos bosques destruídos, nem limpará automaticamente a água contaminada, nem fará desaparecer os metais pesados do sangue das crianças. E ficou evidente que muitos desses mecanismos terminam em tristes situações, como acaba de ocorrer com o Fundo Indígena boliviano, onde o dinheiro do petróleo desembocou na alimentação de denunciadas redes de corrupção.

 

Nestas condições tão restritivas, chegamos a muitas interrogações sobre uma possível “Cúpula dos Povos” na Bolívia sobre mudanças climáticas, já que as vozes de muitos desses “povos”, os originários, sofrem restrições e intimidações. Mas também deixam claro como o alicate ecológico e político pressiona os povos indígenas.

 

Alternativas e autonomia

 

As pressões ecológicas associadas, tanto a ações que contribuem com as mudanças climáticas como a suas consequências, e as restrições políticas para abordar tais questões, afetam sobretudo os indígenas. É necessário deixar muito claro como está operando este grande alicate ecológico e político. Cada dia que persiste ou se aprofunda a situação, a qualidade de vida de muitas pessoas piora, as divisões internas dentro do mundo indígena avançam e as pretensões de resolver todos os problemas com compensações em dinheiro se reforçam. Isto ocorre tanto sob governos conservadores como progressistas.

 

Uma vez que se reconhece tudo isto, as possíveis alternativas ao mencionado alicate necessariamente devem partir da autonomia das organizações indígenas. Elas mesmas podem discutir a situação e explorar as vias de saída, sem pressões, sem ingerências, sem divisionismos externos. Essa autonomia é uma pré-condição indispensável e é uma obrigação assegurar todos os direitos, desde aqueles que asseguram uma vida digna e em liberdade, até os que expressam o acesso à informação e à consulta. Tudo isto não se esgota simplesmente em medidas legais, mas requer uma mudança cultural em nossas próprias sociedades para que os povos indígenas sejam respeitados e entendidos de outra maneira.

 

Notas:

 

1) Por exemplo, as organizações indígenas, em seu comunicado na Cúpula de Mudanças Climáticas assinalaram entre outros pontos que “o extrativismo de Abya Yala se mostra em todas as iniciativas que tomam os governos da nossa região e que implicam: ampliação da fronteira hidrocarbonífera, priorização das atividades mineradoras e hidroelétricas sobre as necessidades dos povos, crescimento do desflorestamento para a conversão dos bosques em zonas com cultivos agroindustriais. O mais triste dessa situação é que os governos de esquerda e de direita se comportam de maneira similar diante da acumulação por despojo como característica fundamental do capital global, cujas principais vítimas somos nós, os povos indígenas”. Povos do Abya Yala diante dos desafios climáticos. http://www.cop20.coica.org.ec/index.php/component/k2/item/152-pueblos-del-abya-yala-frente-a-los-desafios-climaticos

 

2) Guaranis denunciam violenta repressão em Takovo Mora, Página Siete, 18 de agosto de 2015, La Paz (Bolívia), http://www.paginasiete.bo/nacional/2015/8/18/guaranies-denuncian-violenta-represion-takovo-mora-67049.html

 

3) A ocupação da sede da CONAMAQ e intimidações a suas autoridades foram denunciadas repetidamente por organizações indígenas de países vizinhos e redes internacionais; ver por exemplo comunicado da COICA, Solidariedade com a CONAMAQ diante do despojo de sua casa de governo pela política boliviana, 15 de dezembro de 2013.

 

4) O governo declara “irregulares” 38 ONGs, entre elas CEDIB. Página Siete, 7 de setembro de 2015, La Paz (Bolívia), http://www.paginasiete.bo/nacional/2015/9/7/gobierno-declara-irregulares-ong-entre-ellas-cedib-69218.html

 

 

 

 

Eduardo Gudynas é analista da CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social), Montevideo.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

Para ler a publicação original clique aqui.

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