Correio da Cidadania

Na devastação do Iêmen as principais vítimas são as crianças

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Quando, em setembro de 2015, o ex-presidente Hadi fugiu dos houthis que o haviam deposto e mantido preso no seu palácio, deixou o país um pouco diferente do que assumira em 2012. O Iêmen continuava um dos países mais pobres do mundo, o segundo em desnutrição infantil.

 

Quase um quarto da população dependia da assistência alimentar de emergência do World Food Program. A produção de alimentos era mínima e a dependência ao petróleo era total, embora suas reservas fossem pouco significativas. E ainda estava previsto que acabariam em 2017, lançando o país numa crise inimaginável. O maior obstáculo ao surgimento de indústrias era a corrupção extrema, que desencorajava os investimentos.

 

O Iêmen pouco mudara nos três anos de Hadi. Depois do seu antecessor, o ditador Saleh, há 30 anos no poder, ter sido derrubado na onda da Primavera Árabe, os EUA e a Arábia Saudita manobraram para a realização de uma eleição democrática. Mas não muito, pois Hadi foi o candidato único.

 

Dois anos depois, a tribo dos Houthis (45% da população), que controlava o norte do país, revoltou-se, alegando o abandono de sua região pelo governo central e a corrupção que continuava no mesmo pique da era Saleh. Hadi não era popular.

 

Além dos maus costumes na gestão pública, o desemprego era muito grande (35%). Havia falta de água e eletricidade, a qual durava apenas algumas horas por dia.

 

Uma crise que tombou sobre o país levou o governo a cortar os altos subsídios da gasolina e do combustível, causando um brutal aumento de preços e escassez dos alimentos. O próprio ministro do Planejamento de Hadi admitiu que esses cortes poderiam lançar 500 mil habitantes abaixo da linha da pobreza, onde já estavam outros 12 milhões.

 

Manifestações de protestos se sucediam na capital, Sanaa. Quando as vitoriosas forças dos houthis chegaram não houve reação, até mesmo o exército aderiu em parte ou declarou-se neutro.

 

Os houthis propuseram-se a fazer uma nova constituição democrática, com participação de outros grupos, mas quando Hadi percebeu que não haveria lugar para ele e, pior, se achava virtualmente preso, tratou de fugir. Viajou para a sua aliada e protetora, a Arábia Saudita, onde esperava encontrar apoio para voltar ao poder. Foi o que aconteceu.

 

Clamando que iriam repor no governo do Iêmen o presidente Hadi, ilegalmente afastado, os sauditas formaram uma coalizão militar com uma série de povos islâmicos e a ajuda dos EUA e do Reino Unido.

 

Foi alegado também que os houthis eram aliados do Irã, do qual recebiam armas. O governo dos reis do petróleo não poderia permitir que o Iêmen se tornasse satélite do governo de Teerã, seu grande rival na hegemonia do Oriente Médio.

 

Em março de 2015, a monarquia saudita iniciou uma campanha de bombardeios pesados do Iêmen, concentrando-se nas áreas de maior densidade populacional. Algum tempo depois, tropas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes iniciaram uma invasão terrestre.

 

Enquanto isso, navios da coalizão bloquearam os portos iemenitas para inspecionar os navios que chegavam e assim impedir que trouxessem armas para os houthis.

 

Nessa guerra de Golias contra Davi, a coalizão liderada pelos sauditas vem recebendo armas e apoio logístico dos EUA e do Reino Unidos. Os EUA já forneceram 100 bilhões em armamentos, sendo o maior exportador de artefatos bélicos para o governo de Riad. Por sua vez, o presidente Obama fez declarações públicas de apoio integral à guerra saudita, tendo chegado a fornecer belonaves ao bloqueio dos navios que traziam alimentos para os iemenitas não passarem fome.

 

Tendo a seu favor uma tal desproporção de forças, a Arábia Saudita esperava tomar rapidamente a capital e forçar os houthis à rendição em poucos meses. Não foi o que aconteceu. Apesar de parte das cidades iemenitas estarem reduzidas a escombros, os houthis continuam controlando os pontos chaves do país e Sanaa ainda está fora do alcance dos inimigos.

 

No entanto, a sucessão de bombardeios já obteve resultados ponderáveis. Semidestruído, o Iêmen encontra-se em uma situação humanamente desesperadora; 82% da população necessita de ajuda humanitária para poder sobreviver (eram 25% antes da guerra).

 

Como a produção agrícola é irrisória, 90% dos alimentos tinham de ser importados por via marítima. Com o bloqueio, todos os navios que chegavam eram sujeitos a inspeções demoradas, a retardar suas entregas por muito tempo, o que levou muitas companhias a deixarem de levar cargas de alimentos ao Iêmen. Diante dos frequentes atrasos, o povo chega a ficar periodicamente sujeito a rigorosos racionamentos.

 

Nos últimos meses, a ONU passou a levar alimentos para o Iêmen. No entanto, os navios são conduzidos a portos ocupados pela coalizão anti-houthis. E de lá acabam sendo enviados principalmente para os territórios sob domínio dessas forças. Os houthis recebem apenas uma parte pequena.

 

Embora toda a população sofra os efeitos dos impiedosos bombardeios, as crianças iemenitas são as principais vítimas. Relatório de pesquisa da UNESCO, publicado no aniversário do início da campanha liderada pelos sauditas, revela que um terço dos mais de três mil civis mortos no Iêmen eram crianças. “A escala de sofrimento é espantosa”, diz o relatório.

 

Milhares de crianças são atingidas diretamente pelos ataques e “feridas dos mais extremos e cruéis modos”. E o relatório mostra ainda mais sofrimentos através dos efeitos indiretos da guerra. “Os serviços básicos no Iêmen estão à beira do colapso total”.

 

Segundo a UNICEF quase 10 mil crianças com menos de 5 anos podem ter morrido no ano passado por doenças que poderiam ser prevenidas, como resultado da diminuição do acesso a hospitais e a outros serviços de saúde.

 

Calcula-se que cerca de 50 mil crianças iemenitas morrerão antes de completarem cinco anos. A ONU informa que 63 hospitais e centros de saúde foram atacados no ano passado.

 

A Educação não escapa das bombas sauditas. A UNICEF fala em 50 ataques diretos a escolas e professores, além de outras 50 escolas ocupadas por militares.

 

Mais de 1.600 escolas permanecem fechadas devido à falta de segurança, danos à infraestrutura ou por serem usadas para abrigar 2,4 milhões de pessoas desapossadas pelo conflito. E isso é apenas a ponta do iceberg, pois esses devastadores números devem ser maiores.

 

Barack Obama e James Cameron, fornecedores das bombas e dos aviões sauditas, se dizem preocupados com a extensão da violência. Obama fez até um apelo por moderação. A ONU não para de pressionar e conseguiu um cessar-fogo até 18 de abril.

 

Até lá, as crianças iemenitas estão a salvo. Depois de um ano fechadas em casa, terão umas três semanas para brincar na rua. Sem medo dos fantasmas da guerra que lhes roubaram a alegria de serem crianças.

 

Quanto à Arábia Saudita, lembro a declaração do Tribunal de Nuremberg, que julgou os criminosos de guerra nazistas: “iniciar uma guerra de agressão não é apenas um crime internacional, é o supremo crime internacional, diferente dos outros porque concentra em si todos os males acumulados pelos outros crimes”.

 

 

Luiz Eça é jornalista

Website: Olhar o mundo.

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