Correio da Cidadania

A paz sofre sanções dos Estados Unidos

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Já se ouviam os acordes finais anunciando o happy end do conflito nuclear iraniano. A Associação Internacional de Energia Atômica (AIEA) atestara que o Irã cumprira todas as suas obrigações com o acordo de paz.

 

As sanções que devastavam a economia de Teerã seriam canceladas. E, como um morango no bolo, o Irã e os EUA libertaram os prisioneiros dos respectivos países.

 

Mas Obama não deu tempo para o mundo acabar de respirar aliviado. Anunciou novas sanções contra os iranianos por terem realizado testes de mísseis balísticos capazes de transportar bombas nucleares, violando resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

 

Por sinal, armamento de que os EUA, o Reino Unido, a França e até Israel dispõem, sem qualquer reprovação.

 

Apesar da evidente discriminação envolvida no caso, o governo de Teerã justificou-se: respondeu que esses mísseis foram projetados para levar cargas convencionais e não podiam ser armados nuclearmente.

 

Talvez para surpresa da Casa Branca, as outras nações que participaram nas negociações nucleares com o Irã – ou seja, o Reino Unido, a França, a China, a Alemanha e a Rússia – não aprovaram essas novas sanções.

 

Obama não se tocou, foi adiante: detalhou que as sanções abrangeriam todas as 11 entidades norte-americanas e russas que participaram do programa de mísseis balísticos.

 

Elas não poderiam mais fazer negócios com os EUA. E Obama acrescentou que continuavam de pé as antigas sanções aplicadas no Irã por infrações aos direitos humanos e apoio ao terrorismo.

 

Ninguém perguntou se não faltava alguém nessa relação de potências transgressoras. Como a Arábia Saudita, por exemplo, que executa tantos presos quanto o Irã, com a agravante de muitos deles serem por razões políticas.

 

Que trata as mulheres com cidadãs de, vá lá, de segunda classe. Pratica livremente a tortura, proíbe templos de outras religiões, promove uma brutal guerra contra o Iêmen – bombardeando desde hospitais até festas de casamento.

 

Quanto ao apoio ao terrorismo, os EUA puseram o Irã na lista negra por sua ligação com o Hizbollah.

Sucede que o Hizbollah, partido plenamente legal no Líbano, é visto pelos países árabes como um movimento de resistência a Israel.

 

Só os EUA, Israel e alguns satélites o consideram terrorista. A Europa qualifica assim somente o braço armado desse movimento, assim mesmo baseada em raros casos isolados.

 

Já segundo Hillary Clinton, quando secretária de Estado, em 2009: “os doadores da Arábia Saudita constituem a mais significativa fonte de recursos de grupos sunitas terroristas em todo o mundo”.

 

O que foi confirmado pelo vice-presidente Joe Biden, em 2014, ao declarar que os emires sauditas jogaram centenas de milhões de dólares e dezenas de milhares de toneladas de armamentos para a Al-Qaeda e outros grupos em guerra com o presidente sírio Assad.

 

Mais recentemente, editorial do New York Times reclamou dos sauditas por continuarem a canalizar doações para a Al-Qaeda na revolução síria.

 

Bem, a Arábia Saudita pode merecer sanções, mas dos presidentes norte-americanos só recebe afagos, pois é um dos maiores (talvez o maior) comprador de armamentos da indústria dos EUA. Que, por sua vez, conta com o mais poderoso lobby do país.

 

Foi para compensar o acordo nuclear com o Irã, inimigo dos reis do petróleo, que Obama lançou as novas sanções, num momento em que tudo favorecia o início de uma nova e promissora relação com os aiatolás.

 

Claro, Obama também pensou em deixar feliz Israel e os ferozes republicanos do Congresso e do Pentágono, todos raivosos com o fim do clima de guerra latente com os iranianos, dos anos perigosos em que “todas as soluções estavam sobre a mesa”.

 

Aparentemente, pensou mal. A Arábia Saudita e Israel não vão desistir enquanto não tornarem o Irã uma potência impotente. Continuarão exigindo dos EUA demonstrações políticas e militares de amizade, mesmo contrárias aos princípios e interesses da política externa do país de Thomas Jefferson.

 

Os republicanos já deram incontáveis demonstrações que sempre tratarão Obama como um inimigo fraco, incompetente, espertalhão e outros adjetivos que não fica bem repetir...

 

E os generais jamais perderão qualquer oportunidade de pressionar o presidente para intervir sempre que a hegemonia global de Tio Sam sofra contestações.

 

O que ele pode conseguir é prejudicar a democratização do Irã e sua volta à comunidade internacional, como membro bem comportado.

 

Em fevereiro, haverá eleições parlamentares no Irã, vitais para que Rouhani possa avançar com seu programa de liberalização e respeito aos direitos humanos.

 

Seus candidatos já estão enaltecendo a grande melhoria das condições de vida que virá com o cancelamento das sanções negociado pelo governo.

 

Por outro lado, as novas sanções de Obama terão um efeito negativo mínimo na população iraniana, diante do resultado extremamente positivo do fim das sanções europeias e estadunidenses.

 

O Irã voltará ao mercado do petróleo com sua imensa produção, abrirá sua economia para investimentos estrangeiros e terá de volta 100 bilhões de dólares congelados em bancos internacionais, que, aplicados no país, trarão mais progresso e muito mais empregos e bem estar.

 

Mas o efeito psicológico não é de desprezar.

 

Em troca das concessões nucleares de Teerã, os EUA não tinham prometido acabar com as sanções?

Com as novas medidas punitivas, que Obama tirou do bolso do colete, reforçou-se a argumentação de que os EUA não cumprem com sua palavra.

 

Recorda-se que o presidente reformista Khatami, antecessor de Ahmadinejad, esforçou-se para se reaproximar dos EUA.

 

A inimizade entre os dois países começara quando golpe militar dirigido pela CIA derrubou o governo democrático de Mossadegh por ter nacionalizado o petróleo e declarado o país independente na Guerra Fria.

 

Acentuou-se em 1979, quando estudantes iranianos mantiveram sequestrados cerca de 400 diplomatas e funcionários da embaixada norte-americana em Teerã durante um ano.

 

Procurando fazer as pazes com Washington, Khatami cooperou com os EUA na luta contra a Al-Qaeda, no atentado das Torres Gêmeas e contra o Talibã.

 

Na invasão do Afeganistão, o Irã foi decisivo na formação do exército da chamada Aliança do Norte, que lutou contra os talibãs.

 

Nessa guerra, cedeu o uso de bases iranianas a bombardeiros norte-americanos, além de inteligência e apoio logístico.

 

Prestou apoio ao primeiro governo pós-talibã e ajudou a OTAN a reconstruir o exército local. Como resposta, Bush, então presidente, colocou o Irã no seu chamado “Eixo do Mal”.

 

A linha dura iraniana aproveitou para provar que os EUA não mereciam confiança e assim Khatami e as esperanças de uma reforma no Irã foram para o espaço.

 

Nestas eleições, este exemplo da “perfídia norte-americana” está sendo explorado pelos políticos conservadores, com o reforço das ingratas punições aplicadas por Obama depois do Irã ter entrado em acordo com ele.

 

Nesse embalo, o Conselho de Guardiães, a quem cumpre aprovar as candidaturas, acaba de rejeitar 3 mil candidatos reformistas, deixando passar apenas 30. Os reformistas apelaram e contam com o apoio do presidente.

 

Rouhani não vai se omitir. Referindo-se ao início do processo eleitoral, ele declarou: “as primeiras informações não me deixam feliz de modo algum. Usarei todo o meu poder para proteger os direitos dos candidatos”.

 

Além da má vontade do Conselho de Guardiães, terá um formidável adversário, o Supremo Líder Khamenei, que assim se expressou: “somente aqueles que acreditam na República Islâmica e nos seus valores deveriam ser autorizados a se tornar parlamentares”.

 

Pode-se argumentar que a expressão “valores da República islâmica” é um tanto vaga, prestando-se a muitas interpretações.

 

Khamenei pode ser considerado um conservador pragmático. Ele aceitou as negociações e as conclusões do acordo nuclear malgré lui, porque sabia que as sanções estavam levando o país para um buraco insondável, talvez uma miséria tão grande que faria o próprio povo voltar-se contra ele.

 

Mas as “sanções para agradar amigos externos e inimigos internos” podem levar Khamenei a radicalizar o seu pragmatismo conservador.

 

Nesse caso, uma luta contra o reformismo moderado de Rouhani teria resultado incerto. Mesmo contando com a maioria do povo, o presidente pode acabar perdendo se o Conselho dos Guardiães vetar um número desanimador de reformistas e pragmáticos pró-Rouhani.

 

Eleito um parlamento majoritariamente conservador, o projeto liberal-reformista de Rouhani iria para o espaço. E assim também as esperanças de uma paz estável no Oriente Médio.

 

Leia também:

Acordo nuclear: rendição do Irã e a reação russa na Síria

 

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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