Correio da Cidadania

O mal estar da administração tucana

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Antecedentes: educação, administração pública e neoliberalismo


Na década de 1990, Bresser-Pereira – então ministro do governo FHC – propagava pelos quatro cantos do Brasil que era necessária uma profunda reforma administrativa no Estado brasileiro, pautada pela retomada do desenvolvimento nacional. Grosso modo, essa reforma seria baseada na eliminação dos monopólios estatais, a flexibilização do estatuto de estabilidade dos servidores públicos e a transposição de um modelo administrativo “burocrático” para um modelo “gerencial”. Vamos nos ater a este último ponto: o que seria um modelo administrativo do tipo “gerencial”?

 

Em primeiro lugar, trata-se de um modelo que tem como axioma principal a ideia da eficiência. A eficiência é explicada, normativamente, pela busca de uma maior e mais rápida produtividade, paralelamente a uma diminuição nos gastos com a produção (tanto nos gastos em capital fixo, quanto nos gastos com recursos humanos). Em segundo lugar, tal modelo traz em sua essência o espírito do management contemporâneo, com seu palavreado carregado de expressões em inglês, e uma linguagem toda viciada nas “metas” e nos “resultados”.

 

Vinte anos depois do início desse processo desencadeado por Bresser-Pereira e FHC, vivemos um período de aprofundamento de suas diretrizes na política brasileira. Especialmente nos estados e cidades que são governados pelo PSDB. A promíscua relação entre o governo de Geraldo Alckmin e diversas (e misteriosas) empresas de consultoria em gestão é um exemplo claro disso. No âmbito educacional, o mais emblemático caso é o do Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE–Brasil). (1) A despeito do filantrópico nome de “instituto”, trata-se de um grupo de consultores amparados por empresas.

 

Esse “casamento” vem sendo denunciado por diversos especialistas em educação, como Luiz Carlos de Freitas, diretor da Faculdade de Educação da Unicamp. Em entrevista à Rede Brasil Atual em 24/11(2), Freitas afirma que em SP a privatização da educação vem sendo implantada sorrateiramente através do aclamado modelo de escola de tempo integral. Por sinal, este é um dos modelos exemplares do ICE-Brasil, que impôs método similar em escolas de Pernambuco.

 

No documento das diretrizes do ensino integral em SP (3), nos deparamos logo de cara com um generoso agradecimento à equipe do ICE-Brasil “pelo apoio técnico para a concepção, desenvolvimento e implantação do Programa de Ensino Integral, em particular na figura dos seus consultores”. Já na seção 2, “Instrumentos de Gestão”, o documento nos informa que toda a estrutura do modelo de gestão que percorre as diretrizes da cabeça aos pés é o chamado ciclo PDCA (4).

 

O ciclo PDCA (do inglês Plan, Do, Check e Act) é um desses organogramas empresariais que tornam a linguagem das “metas” e “resultados” facilmente consumível por qualquer gestor. Estamos, portanto, diante do avanço evidente de princípios gerencialistas neoliberais para o âmago do sistema educacional paulista. Nenhuma novidade até aqui (5).

 

Ocorre, no entanto, o surpreendente movimento dissimulado com que isso acontece. Ou seja: sem qualquer debate junto à população, sem qualquer clareza na grande mídia e sem qualquer transparência por parte do governo. A revolta dos estudantes de São Paulo contra a (assim chamada) Reorganização Escolar de Alckmin expõe algumas das veias escondidas desse processo.

 

Os estudantes se rebelam


Uma das consequências mais problemáticas do gerencialismo neoliberal é a verticalização da criação e execução de políticas públicas. Quando da implantação desse modelo no Brasil, argumentava-se que era preciso acabar com o patrimonialismo no Estado brasileiro e todas as formas de apropriação da coisa pública para fins privados. Esse discurso – aparentemente fundado nos mais sóbrios valores republicanos – acabou servindo como subterfúgio para a exclusão ulterior da participação popular nos mecanismos de tomada de decisão e aplicação das políticas públicas (vistas, a partir de então, como também uma apropriação indevida da coisa pública). Atentemos para este aspecto.

 

A rebelião estudantil em São Paulo é mais do que uma simples mobilização pela educação. Ela é, também, uma revolta contra este aspecto objetivo do gerencialismo neoliberal. O subtexto da mensagem que os estudantes querem passar é um sonoro “me ouça!”. Ao fim e ao cabo, o sentido geral desta mobilização é demonstrar que o bem comum e a educação pública não são como uma empresa, onde executivos e CEOs tomam decisões arbitrárias do alto de sua autoridade radicada na ideia da eficiência e da otimização dos recursos. Demonstra-se, igualmente, que a política não é monopólio dos políticos “profissionais”.

 

Estudantes, pais e professores não querem ser vistos com essa passividade que o governo estadual quer lhes imputar. Não são, portanto, massa de manobra gerencial, mas cidadãos que não têm como optar, senão pela educação pública. Por isso, não querem ser tratados como pessoas de segunda classe, inertes a qualquer ordem que “baixa” lá de cima. Por isso, anseiam participar na tomada de decisões sobre aquilo que lhes afeta diretamente – e, no caso, não dá pra subestimar o tamanho do impacto na vida das pessoas de atos como o fechamento de escola e a transferência de alunos de um lugar para o outro.

 

Dito isso, há uma coisa importante de ser destacada. O prumo da rebeldia destes estudantes está no ato de ocupar a escola, ressignificar o espaço que por direito é deles e, o que é mais interessante, transformá-lo através de uma interessante experiência de autogestão. Frente ao modelo gerencial neoliberal, os estudantes criaram a sua própria “administração escolar”, muito mais participativa e envolvente. Esse é o ingrediente inesperado dessa história. Poucos imaginavam a densidade do modelo de gestão colaborativa que ocorre nas ocupações. Esse fenômeno chama a atenção de artistas, músicos e intelectuais que veem nele a realização de uma antiga promessa dos velhos documentos basilares da educação brasileira: a integração escola-comunidade em um laço de irmandade absolutamente conveniente.

 

A forma como as escolas estão sendo autogeridas desmente qualquer insinuação de passividade à população e, fundamentalmente, a crianças e adolescentes. Nas últimas semanas, fomos contemplados por imagens de alunos pintando suas escolas, organizando aulas e oficinas, revitalizando banheiros, fazendo a manutenção de pátios e jardins, e (pasme-se) encontrando material escolar novo e inutilizado, jogado às traças em salas e gavetas trancadas pela burocracia escolar. Eles estão sendo mais brilhantes do que qualquer “Plan, Do, Check, Act” ou quaisquer outros planos de eficiência vestidos com a roupagem gerencial.

 

Soma-se a isso o fato de que essa autogestão estudantil não representa qualquer apropriação patrimonialista do espaço público. Prova disso? Os estudantes estão promovendo uma integração escola-comunidade que é muito mais verdadeira e animadora do que aquela que se entrevê nos herméticos parâmetros oficiais da educação brasileira (6). Resumo da ópera: os estudantes conseguiram ser mais “eficientes” do que o próprio governo, que já não consegue esconder sua inépcia proposital frente a pequenas (e nada custosas) atitudes que fariam toda a diferença no processo educacional.

 

Alckmin publicou no dia 5 de dezembro no Diário Oficial do Estado de São Paulo a revogação do decreto 61.672, de 30 de novembro de 2015 (que disparava a “reorganização” escolar). O texto da revogação, no entanto, é impreciso – tanto quanto o pronunciamento feito pelo governador, no dia 4 de dezembro. Assim, os estudantes mantêm as ocupações, até que todas as suas reivindicações sejam cumpridas. Dentre estas, consta a exigência de um cronograma de audiências públicas para debater de forma clara e verdadeira uma necessária reforma do ensino. Ao fazer isso, jogam a administração tucana num mal estar inédito no estado de São Paulo. Os estudantes têm nas mãos a oportunidade de transformar esse mal estar no primeiro passo para uma verdadeira inflexão nos rumos da educação em SP e no Brasil.

 

Notas

 

1) Vide o site do instituto: http://www.icebrasil.org.br/. Observação: o parceiro do ICE em SP é o Instituto Qualidade no Ensino (http://www.iqe.org.br/). Uma rápida navegação na seção “Parceiros” mostra quais são as empresas que apóiam o instituto.

 

2) http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2015/11/reorganizacao-e-parte-de-um-plano-que-destroi-a-escola-publica-e-nao-traz-avanco-alerta-diretor-da-fe-da-unicamp-5165.html.

 

3) http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/342.pdf

 

4)Em consonância com os valores e premissas deste Programa, o modelo de gestão das Escolas de Ensino Integral, promove o alinhamento do planejamento com a prática dos educadores e os resultados educacionais. Para isso, adota-se a metodologia do ciclo PDCA, neste modelo, que tem como instrumentos de planejamento o Plano de Ação (entregue como anexo ao Plano de Gestão) que explicita a identidade da escola, sua missão, sua visão de futuro e seus valores, o Programa de Ação, o Guia de Aprendizagem, a Agenda Bimestral e a Agenda do Profissional, bem como, o Plano de Gestão Quadrienal e a Proposta Pedagógica. Essa lógica de gestão escolar oportuniza as condições adequadas para o desenvolvimento do Modelo Pedagógico”. Fonte: Diretrizes do Programa Ensino Integral, p.38.

 

5) A defesa política destes princípios é escancarada num texto de Cláudio Moura de Castro para o jornal o Estado de S. Paulo, em 28 de setembro de 2011: “É irrelevante perder tempo indagando se a escola tem ‘produto’, se ensino é ‘mercadoria’, se ‘produtivismo’ é neoliberal e outras fantasias do mesmo naipe. Importa reter que instituições das mais variadas naturezas e índoles têm muito em comum e que há boas regras e ferramentas que servem para todas. Como o setor produtivo se antecipou aos outros, há excelentes razões para aprender com ele. Com efeito, quem entendeu isso está ganhando qualidade”. Fonte: Escola é empresa? http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,escola-e-empresa-imp-,778472

 

6) “[...] o movimento conseguiu realizar um dos grandes objetivos de currículos escolares: trazer a comunidade para dentro da escola. Isso fica explícito na mobilização de pessoas para colaborar com aulas e oficinas, que têm mantido efervescente o ambiente das escolas ocupadas, mesmo nos finais de semana. ‘Tanto já se falou em trazer as pessoas para a escola, usando festas, criação de conselhos e outros mecanismos. Sempre foi muito difícil, porque em geral a gente identifica como instituição do Estado e não como coisa pública, nossa. Um milhão de pessoas já escreveram sobre isso. E aí, numa coisa super de uma hora para outra, que não era um projeto do governo, se consegue’, ressalta Crislei [de Oliveira Custódio] . ‘Fico pensando como serão essas escolas depois da ocupação. Certamente é um divisor de águas’, aponta a pedagoga”.


Fonte: As lições que ficam. https://observatoriosc.wordpress.com/2015/11/26/as-licoes-que-ficam/

 

 

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Bruno Casalotti é sociólogo

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