Correio da Cidadania

Portugal: um novo ciclo político

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Na terça-feira, 24 de novembro, 51 dias depois das eleições parlamentares de 4 de outubro, o presidente Cavaco Silva reconheceu que não tinha outra alternativa senão encarregar o secretário-geral do Partido Socialista, António Costa, de formar governo. Este, no próprio dia, apresentou a composição do ministério que tomou posse nesta quinta-feira.

 

O debate do programa do governo no Parlamento já está marcado para os dias 1 e 2 de dezembro. Só haverá votação se a direita apresentar uma moção de rejeição, como a esquerda fez quando derrubou o segundo governo Passos Coelho no último dia 10 de novembro. Mas, diferenteemente do que aconteceu naquela data, se a rejeição for proposta, será derrotada pelos votos conjugados do PS, Bloco de Esquerda, PCP e PEV. É que, ao contrário do segundo governo de Passos Coelho, este conta com uma maioria parlamentar que lhe foi dada pelos acordos firmados entre o PS e os partidos à sua esquerda.

 

Na história recente desde a Revolução dos Cravos de 1974, é a primeira vez que isto acontece: um acordo envolvendo PS, Bloco e PCP para viabilizar um governo; é também um fato inédito que seja o partido que ficou em segundo lugar nas eleições a conseguir reunir maioria parlamentar para governar. Mas, apesar de nunca ter acontecido antes em Portugal, esta situação é bastante comum na Europa – atualmente, há quatro países cujos primeiro-ministros não saíram do partido vencedor das eleições: Luxemburgo, Dinamarca, Bélgica e Letônia.

 

Nestes mais de 50 dias, o país assistiu ao espetáculo dos partidos da direita, o Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP), fazendo todo o tipo de manobras para tentarem manter-se no poder. Para isso, contaram com o precioso auxílio do presidente da República.

 

O ocaso de Cavaco Silva

 

Aníbal Cavaco Silva vive um ocaso melancólico. Já foi todo-poderoso. Governou muitos anos com maioria absoluta no parlamento. Fazia o que queria. Ficou famoso por ter dito que nunca se enganava e raras vezes tinha dúvidas. Como líder do PSD, foi primeiro-ministro de Portugal de 6 de novembro de 1985 a 28 de outubro de 1995. Saiu do governo bastante “queimado”, mas o tempo torna o eleitorado esquecido. Desta forma, passou por um período de relativo apagamento até se candidatar e vencer as eleições presidenciais de 22 de janeiro de 2006, e reeleger-se em 23 de janeiro de 2011. Haverá novas eleições em 24 de janeiro de 2016, mas não pode recandidatar-se (o limite é dois mandatos).

 

O regime português é semipresidencialista. O presidente é o chefe do Estado, mas não do governo. O executivo é formado de acordo com o resultado das eleições legislativas e responde diante do Parlamento – e não do presidente. Eleições legislativas e presidenciais são separadas e em datas diferentes.

 

Cabe ao presidente indigitar (designar) o primeiro-ministro, levando em conta os resultados eleitorais, mas este, a partir do momento em que é nomeado, tem de se preocupar é com o Parlamento.

 

Porém, o presidente não é uma “Rainha da Inglaterra”: a Constituição dá-lhe uma espécie de superpoder, uma “bomba atômica”, que é a faculdade de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Seria, sem dúvida, o que Cavaco Silva gostaria de fazer. O presidente da direita gostaria de poder convocar sucessivas eleições até que os portugueses votassem de acordo com os desejos dele, isto é, que dessem de novo maioria absoluta de deputados ao PSD e ao CDS/PP, tal como aconteceu no primeiro governo de Passos Coelho. Mas não pode fazê-lo.

 

A ironia é que, nos seis últimos meses de mandato, o presidente não pode usar a “bomba atômica”; e também não pode dissolver o parlamento nos seus primeiros seis meses após ser eleito. Assim, para grande tristeza do presidente, as opções que lhe restaram foram muito poucas.

 

Primeiro, nomeou Passos Coelho para formar governo sabendo que este não tinha maioria para governar. Tinha a esperança que houvesse uma rebelião no PS e que uns poucos deputados socialistas votassem ao lado de Passos Coelho. Chegou a fazer um apelo, disfarçado, nesse sentido. Fracassou. Passos Coelho formou o novo gabinete e foi derrubado 12 dias depois – o governo mais breve do período pós-74.

 

Depois, Cavaco Silva protelou o mais que pôde uma nova decisão. No final, num espetáculo patético, esbravejou, pôs condições, mas não teve outra saída que não fosse dar posse ao governo de António Costa.

 

O que levou o PS a procurar a esquerda?

 

O novo primeiro-ministro não é um Corbyn, um outsider esquerdista dentro da máquina do partido que foi elevado à liderança por uma vaga de fundo das bases partidárias. Não é sequer o que se poderia chamar de “socialdemocrata de esquerda”. A carreira de António Costa no PS é a de um conservador políticosocialdemocrata, alinhado ao mainstream da social-democracia europeia. Já fora ministro da Justiça de um dos governos socialistas e ocupava atualmente o cargo de prefeito da capital do país, Lisboa. Aliás, em dois congressos do PS foi justamente Costa o escolhido para atacar frontalmente o Bloco de Esquerda, intervenções que pareciam ter o único objetivo de queimar qualquer ponte que se pudesse estabelecer entre os dois partidos.

 

A sua campanha para as eleições de 4 de outubro, além disso, foi também bastante conservadora, destacando-se propostas como a manutenção do congelamento das aposentadorias, a criação da figura jurídica da demissão por consenso, ou a baixa da contribuição previdenciária dos trabalhadores (TSU), com a consequente queda do valor das aposentadorias futuras, apresentada como medida para incentivar a criação de emprego (todas estas medidas viriam a ser abandonadas mais tarde, devido ao acordo das esquerdas).

 

Como explicar, então, que este mesmo António Costa tenha dado o passo que nenhum dos seus antecessores jamais dera para fazer um acordo com a sua esquerda?

 

Brevemente, podemos citar algumas razões:

O ódio despertado pelo governo Passos Coelho


Nunca, depois de 1974, houve um governo que demonstrasse tanta sanha no ataque aos trabalhadores, aos aposentados, aos pobres, aos fragilizados pela doença, aos jovens, aos desempregados. Ao mesmo tempo, nunca houve um governo que desse tanto dinheiro ao sistema financeiro. Foi o executivo que convidou a sua população a sair do país, apresentando a emigração como uma “oportunidade”. Que sustentou que os portugueses tinham andado muitos anos a “viver acima das possibilidades”, e por isso teriam de pagar a fatura. Que quis ser “mais troikista que a troika” e aplicar medidas mais duras ainda que as exigidas pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI. Que tomou inúmeras medidas de destruição do Estado Social, particularmente na Segurança Social, na Saúde e na Educação.

 

Os partidos deste governo, o PSD e o CDS, pagaram a fatura nas eleições, ao perderem 730 mil votos e a maioria absoluta que tinham. Por isso, os eleitores do próprio PS, do Bloco e do PCP jamais perdoariam a quem, de uma forma ou de outra, contribuísse para que a direita se mantivesse no poder. Este ódio pressionou não só o PS, como também Bloco e PCP, a entenderem-se para impedir que a direita se mantivesse no poder.

 

O fantasma da pasokização


Os partidos socialdemocratas, particularmente os do sul da Europa, vivem assustados pelo fantasma do que aconteceu ao Pasok da Grécia, que entrou no governo ao lado dos seus velhos adversários da Nova Democracia para aplicar a política da troika. O castigo que receberam foi tão grande que quase os fez desaparecer.

 

O crescimento do Bloco de Esquerda

 

Nenhuma das tentativas de criar novas formações políticas que canalizassem o voto de protesto, semelhantes ao Podemos de Espanha ou outros, deu certo. Quem se beneficiou desse repúdio pelo governo da direita e da busca de alternativas foi o Bloco de Esquerda, que duplicou a sua votação, passando a ser o terceiro maior partido do país, com 10,19% dos votos e 19 deputados. A soma do Bloco com a coligação CDU (PCP+PEV), dá mais de 18% e 1 milhão de votos. Isto também fez soar um sinal de alarme no PS, que esperava um resultado muito superior aos 32% que obteve.

 

A matemática dos resultados

 

PSD e CDS/PP, juntos na coligação Portugal à Frente (PàF), elegeram 107 deputados, longe dos 116 necessários para ter maioria. Poderiam tentar governar em minoria, mas Bloco e PCP anunciaram que apresentariam uma moção de rejeição. A única forma de a direita se manter seria que o PS se abstivesse, o que seria demolidor para o seu futuro.

 

Por outro lado, somando os deputados do PS e do CDS/PP, num hipotético acordo que já ocorreu noutras oportunidades, também não haveria maioria (86+18=104).

 

A única possibilidade de maioria era a soma dos deputados do PS com o Bloco de Esquerda, o PCP e o PEV (86+19+17=122) Mas teriam de ser obrigatoriamente todas as formações à sua esquerda. Uma aliança PS-Bloco ou PS-PCP-PEV não seriam suficientes para a maioria parlamentar.

 

Os acordos da esquerda

 

O governo que tomou posse na quinta, 26, não é um “governo da esquerda”. É um governo do PS apoiado num acordo parlamentar com o Bloco de Esquerda, o PCP e o PEV. Nem Bloco, nem PCP, nem PEV participam nele.

 

“O Bloco não pode integrar governos que subscrevem” compromissos com que o Bloco não concorda, em que “o povo não foi ouvido” e que “não permitem romper totalmente com a austeridade”, esclareceu a porta-voz do partido, Catarina Martins, referindo-se ao Tratado Orçamentário da União Europeia, que força os países a ter déficits inferiores a 3%, e à negativa do PS de reestruturar a dívida pública, que sufoca a economia do país.

 

Mas isto não quer dizer que os bloquistas não deem importância ao acordo que veio viabilizar o novo governo. "Este acordo não garante a transformação de que o país precisa. Mas representa um virar de página, o fim de um ciclo em que a pobreza nunca parou de aumentar e os salários e pensões nunca pararam de diminuir", sublinha Catarina Martins, para quem "o grande desafio começa agora. Haveremos de ter um país um pouco mais justo. Este acordo e a derrota da direita é apenas um bom começo".

 

Os acordos que dão a maioria parlamentar a António Costa foram anunciados no mesmo dia em que o governo de Passos Coelho caiu. São acordos separados, entre o PS e o Bloco de Esquerda, o PS e o PCP, o PS e o Partido Ecologista. “Os Verdes (PEV), um satélite do PCP que só se apresenta às eleições coligado com este (na coligação CDU). Os seus textos podem ser consultados aqui, aqui e aqui.

 

Os acordos introduziram 71 alterações no programa do PS, e permitem que Catarina Martins aponte para o início de “um novo ciclo, comprometido com o início da reposição de rendimentos do trabalho e com a defesa do Estado Social. Descongelar pensões, aumentar o salário mínimo nacional, parar as privatizações, combater a precariedade, estão no centro do compromisso maioritário".

 

Por outro lado, Mariana Mortágua, outra integrante do grupo de mulheres dirigentes do Bloco de Esquerda que mereceram uma matéria especial do jornal britânico The Guardian, afirmou o compromisso do seu partido com a nova maioria parlamentar: “ao contrário da política da fraude (refere-se ao governo anterior), cumprir os compromissos. Ao contrário do colossal embuste que foi a austeridade, queremos a recuperação da economia para o emprego. Cumpriremos os compromissos com os trabalhadores e com os pensionistas, para que recuperem o que é seu. Cumpriremos o compromisso com o aumento do salário mínimo e com os trabalhadores a falsos recibos verdes (precários).”

 

E a verdade é que a nova maioria não ficou à espera das indecisões do presidente e já começou a funcionar a todo o vapor na Assembleia da República. Na primeira semana parlamentar, foram derrubadas todas as limitações que a anterior maioria de direita impusera à lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (aborto) e foi aprovada a possibilidade de casais de pessoas do mesmo sexo adotarem crianças. E estão já agendadas outras iniciativas legislativas que refletem os acordos da esquerda.

 

Os acordos à prova

 

É previsível que ocorra uma onda de otimismo em torno deste governo, à medida em que forem tomadas as primeiras medidas de reposição dos salários e das pensões e derrubadas leis aprovadas à última da hora, como a que veio punir os pacientes de doenças crônicas e incuráveis. Mas logo é previsível que comecem a surgir os problemas provocados pela insistência do PS em aceitar os limites dos tratados europeus e o peso da dívida, recusando-se a renegociá-la. Até porque vão começar a surgir os verdadeiros números do governo, que se vangloriava de ter os “cofres cheios”, coisa que se começa a verificar ser mais um embuste.

 

E vão surgir as pressões da União Europeia. É certo que António Costa pertence à família política da segunda maior força europeia. Mas todos se recordam que a chefe do governo alemão, Angela Merkel, e o seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, comemoraram a “vitória” do seu pupilo Passos Coelho. Como reagirão os protagonistas do acordo das esquerdas diante das primeiras contradições?

 

O acordo deixou estabelecido que, diante dos primeiros problemas, a solução nunca passará por cortar salários ou aposentadorias. E deixou estabelecido um procedimento de cooperação parlamentar e de consultas mútuas, incluindo a criação de comissões sobre a sustentabilidade da dívida externa e sobre o futuro da Segurança Social. Será suficiente? O futuro dirá.

 

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Luis Leiria é jornalista do Esquerda.net.

 

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