Correio da Cidadania

“Para onde olhamos, vemos projetos de destruição do SUS”

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A Copa do Mundo de futebol já passou e a zona leste de São Paulo continua mais ou menos a mesma de sempre. Isto é, altamente precarizada em relação aos serviços públicos essenciais, confirmando a noção de “engodo” que alguns de seus moradores criaram ao longo do tempo. Como se fosse pouco, a festa da FIFA foi seguida por um ano de forte arrocho fiscal. Aguerrida, a população local contra-atacou com a organização de um posto de saúde popular. É sobre isso que conversamos com o médico da família Felipe Gonçalves.

 

“Algumas demandas como, por exemplo, uma receita ou um encaminhamento que possa ser feito ali na hora, nós fazemos. Mas é um descaso que se arrasta por muitos anos. Nesse sentido, conseguir colocar a questão da participação popular na comunidade e fazê-la perceber que aquele serviço é dela, ela tem todo o direito de dizer onde, como e o que vai ser, resgata até a autoestima da população”, explicou.

 

No entanto, é a chamada ofensiva conservadora que pauta esse já perdido ano de 2015, como se vê na chamada “Agenda Brasil”, apresentada pelo PMDB com envergonhada aprovação do governo petista. “Há dez anos, sempre falávamos em como o SUS era uma coisa em construção. Algo que ainda estava incompleto. Em nossas conversas de hoje, cada vez mais o discurso deixa de ser sobre algo em construção, mas de algo que está sendo destruído”, criticou.

 

Apesar de elogiar o nível de mobilização dos moradores locais e seu envolvimento com o “posto de saúde autônomo”, Felipe lamenta a destinação de enormes somas de dinheiro, pelos diferentes governos. “Construíram o Itaquerão e um monte de asfalto para que os torcedores pudessem chegar ao estádio e tudo com dinheiro público, enquanto as pessoas da região continuam vivendo muito mal, sem esgoto, sem educação e sem saúde”.

 

A entrevista completa, gravada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

 

 

Correio da Cidadania: Pra começar, o que você pode nos contar a respeito da experiência promovida pelo Fórum Popular da Saúde e a Associação dos Moradores do Jardim Helian, que colocaram à disposição da população um “Posto Popular de Saúde”? Como tem funcionado?

 

Felipe Gonçalves: O Posto Popular de Saúde é uma iniciativa e mobilização da população do Jardim Helian (dentro de Itaquera). O que temos feito, há pelo dois anos e também em outras comunidades, é conseguir mobilizar os moradores tanto pelo lado da iniciativa de solidariedade aos atendimentos mais básicos, que podemos fazer na hora, como, e principalmente, no sentido de nos organizarmos para exigir do poder público a instalação de um serviço de saúde adequado, capaz de suprir as demandas da população da região.

 

No Jardim Helian, o posto popular tem funcionado também, e especialmente, para fazermos reuniões com a comunidade e buscar um diagnóstico dos problemas de saúde que a própria comunidade enfrenta. E fazemos isso mantendo uma abordagem comunitária, tanto com os líderes locais como a população em geral e os militantes do Fórum Popular de Saúde.

 

Nesse tipo de abordagem, tentamos entender quais são as demandas da população e a partir daí pensar nas estratégias de cobrança ao poder público e também saber qual tipo de serviço seria mais interessante para a região.

 

Correio da Cidadania: Você mencionou que existe essa experiência em outros lugares, onde eles existem e como são essas outras experiências?


Felipe Gonçalves: Já existiram. Uma outra experiência interessante que tivemos foi no ano passado, na Ocupação Copa do Povo, que ficava bem próxima do Jardim Helian. Em uma ocupação de sem teto, muitas vezes as pessoas vêm de lugares mais distantes e ficam completamente desassistidas do ponto de vista da saúde. E muitas vezes o serviço de saúde, até de uma forma preconceituosa, se nega a atender aquelas pessoas.

 

É uma situação e um momento de extrema fragilidade para quem está vivendo numa ocupação. E nós vamos lá para tentar ajudá-las a suprir suas demandas de saúde mais básicas. Às vezes, vemos gente com problemas de saúde mental, pressão alta ou mesmo diabetes, e damos um apoio tanto no sentido de encaminhá-las para um outro serviço como também, se possível, resolver na mesma hora as demandas mais simples.

 

Correio da Cidadania: Por não ser muito comum vermos as pessoas se organizando para tomar esse tipo de iniciativa, a ação de vocês acaba chamando muito a atenção. É de se imaginar que tenha chegado a um grau muito grande a impaciência da população da região. Dessa forma, como que a população tem participado e vivenciado o dia-a-dia do posto e que tipo de coisas foram fermentando a construção dessa experiência?


Felipe Gonçalves: Conhecemos a comunidade já há um tempo, muitos são companheiros que participam do Fórum Popular de Saúde e também estão muito envolvidos nos movimentos de moradia e transporte. É uma comunidade bastante mobilizada. Conversando com as pessoas, percebemos que já estão na luta para conseguir uma unidade básica de saúde no local há quase 30 anos.

 

Há um posto funcionando em uma casa improvisada já há muitos anos, mas é completamente inadequada para as necessidades de saúde. Por exemplo, o programa Saúde da Família, que permite às pessoas receberem a visita de um médico em casa, não pode ser feito em boa parte do território do Jardim Helian porque não há espaço naquela unidade atual para comportar o número de equipes necessárias. Logo, vemos as pessoas muito impacientes mesmo, cada vez mais.

 

Em julho, houve um protesto na Secretaria Municipal de Saúde, conversaram com um representante e fizeram bastante barulho parta chamar a atenção da prefeitura. E no momento há um decreto que define um terreno para a construção do posto de saúde, mas está tudo parado.

 

Com todas essas dificuldades, as necessidades vão se acumulando. Quando fazemos as reuniões, algumas vezes também visitamos as casas das pessoas, o que muitas vezes o posto local e sua equipe não conseguem dar conta. Conseguimos achar saídas comunitárias para problemas já crônicos da cidade ou da comunidade. Algumas demandas como, por exemplo, uma receita ou um encaminhamento que possa ser feito ali na hora, nós fazemos. Mas é um descaso que se arrasta por muitos anos.

 

Correio da Cidadania: Qual nível de importância você atribui a essa experiência, tanto pelo serviço prestado em si como por outros eventuais aspectos?

 

Felipe Gonçalves: O SUS é uma experiência muito importante para o Brasil e foi construído com participação popular. Se hoje temos em um país como o Brasil, que não é rico, uma lei em sua Constituição dizendo que todo cidadão tem direito à saúde, é porque houve muita mobilização popular. Em São Paulo, cidade muito importante em tal processo nas décadas de 70 e 80, as pessoas participavam muito do debate de saúde. Tínhamos os Conselhos de Saúde, que deveriam ser espaços de ampla participação popular. Mas observamos hoje em dia que os governos tentam afastar cada vez mais as pessoas da participação.

 

Hoje, em São Paulo, temos diversas empresas e entidades do setor privado que gerenciam o serviço de saúde da prefeitura. Os serviços de saúde básica não são diretamente gerenciados pela prefeitura, mas por essas entidades do setor privado, o que torna a participação popular muito difícil. Se um paciente ou um trabalhador tenta intervir e participar de alguma maneira, sua ação é muito dificultada pelas entidades do setor privado.

 

Nesse sentido, conseguir colocar a questão da participação popular na comunidade e fazê-la perceber que aquele serviço é dela, ela tem todo o direito de dizer onde, como e o que vai ser, resgata até a autoestima da população.

 

E em tempos de “Agenda Brasil” (lançada pelo PMDB no início do segundo semestre) e de ataques ao SUS, acredito ser um caminho para conseguirmos manter o direito à saúde no Brasil e até expandi-lo. Se temos um governo querendo retirar direitos, somente a participação popular pode conseguir manter e expandir os direitos.

 

Correio da Cidadania: Não podemos esquecer de todas as promessas de progresso e melhorias estruturais na região, pelo advento da Copa do Mundo. Passado mais de umano de seu fim, quais as dívidas do poder público com a questão da saúde, entre outras, na região do Jardim Helian e Itaquera?


Felipe Gonçalves: É muito interessante citar a questão da Copa do Mundo porque realmente é uma questão que chamou muita atenção na região. E para nós também chama muita atenção porque em um país como o Brasil e uma cidade como São Paulo, que tem deficiências do ponto de vista do transporte, da infraestrutura, do saneamento básico, da habitação, gastaram-se bilhões de reais, muito dinheiro, para viabilizar um evento de uma multinacional, a FIFA, e garantir ganhos exorbitantes para as empreiteiras brasileiras, que agora vemos envolvidas em casos de corrupção.

 

Portanto, se tem dinheiro, e muito, para bancar esse tipo de evento, a gente fica se perguntando: por que não tem dinheiro, por exemplo, para lidarmos com as demandas de saneamento básico, que são muito importantes no Jardim Helian? Vemos córregos a céu aberto, esgoto em situação inadequada...

 

Agora, há a discussão sobre a construção de um cemitério em área de nascente. Também temos a questão da habitação, e quem já passou pela periferia de São Paulo pode ver que é muito importante. As pessoas às vezes não têm saúde, educação e ainda vivem muito mal, não é? Por isso, percebemos que se não fizermos um barulho, uma pressão, o dinheiro vai continuar indo para os grupos privados, quando deveria ser aplicado nos direitos da população, como os citados aqui.

 

A região ficou muito cara para a população. Construíram o Itaquerão e um monte de asfalto para que os torcedores pudessem chegar ao estádio e tudo com dinheiro público, enquanto as pessoas da região continuam vivendo muito mal, sem esgoto, sem educação e sem saúde. A população ficou bastante descontente e acho que a ocupação Copa do Povo foi um resultado disto.

 

Correio da Cidadania: Em Brasília, vimos o anúncio da chamada Agenda Brasil, que entre muitos pontos que intensificam o ajuste fiscal abriria uma brecha para cobrança aos usuários do SUS. O que você pensa disso?


Felipe Gonçalves: É o desmonte do SUS. Há dez anos, sempre falávamos em como o SUS era uma coisa em construção. Algo que ainda estava incompleto. Em nossas conversas de hoje, cada vez mais o discurso deixa de ser sobre algo em construção, mas de algo que está sendo destruído. Vemos essa iniciativa do Governo Federal, mas também iniciativas parecidas dos outros governos, municipais e estaduais. Para onde olhamos, vemos projetos de destruição do SUS.

 

A partir do momento em que se começa a cobrar dinheiro das pessoas para que recebam atendimento médico, não se tem mais um serviço público. Pode ser o início de retrocessos muito piores. Estamos envolvidos no movimento pela saúde sempre com o intuito de fortalecer o SUS como um todo. Às vezes pode parecer que vamos lá só fazer um atendimento, mas é uma questão muito maior. Nossos esforços também estão voltados para a mobilização da população em torno de uma saúde para todos. Estamos muito preocupados com as iniciativas discutidas pela Agenda Brasil e o PMDB.

 

Correio da Cidadania: De modo mais geral, estamos diante de ofensivas conservadoras, para além da área da saúde, que tem diferentes projetos nas gavetas do Congresso, como a PEC 451. Como definir o atual contexto brasileiro do ponto de vista do interesse popular?


Felipe Golçalves: Estamos em uma discussão no Brasil, na mídia e em todo lugar sobre a crise econômica. Estamos discutindo as perspectivas da diminuição do emprego e do salário, da crise econômica, das pessoas sofrendo... Mas, por outro lado, nem todo mundo sofre no país. Podemos ver os bancos brasileiros batendo recordes atrás de recordes de lucros.

 

A Agenda Brasil e as ofensivas em curso são uma iniciativa de economizar nos direitos para continuar dando às maiores empresas condições de continuarem tendo os lucros que sempre tiveram. Como repetimos, muitas vezes o Estado Brasileiro é raptado e capturado pelos bancos e grandes empreiteiras, que garantem seus lucros exorbitantes às custas dos nossos direitos.

 

Por isso, acreditamos ser muito importante a mobilização popular para puxar os dados para o nosso lado: em vez de gastar dinheiro para garantir lucros aos bancos, o governo tem de gastar para garantir os direitos da população, em termos de saúde, educação etc.

 

Em um momento de crise econômica, se não temos ao menos os direitos básicos garantidos, a renda da população cai a níveis muito preocupantes. Estamos em situação de calamidade e achamos que é realmente momento de ir pra a rua, organizar as comunidades.

 

Por fim, não podemos esquecer: tivemos uma eleição em que parecia haver dois projetos muito diferentes em jogo, mas vimos que na verdade são muito parecidos: os projetos do PSDB e do PT. Para nós, a saída só pode vir com a luta mesmo.

 

 

Áudio da entrevista

 

 

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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas

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