Correio da Cidadania

Europa: barbárie e esperança?

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Raghad sofria de diabetes. Foragidos sírios, ela e seu pai Eyas Hasoun tentavam chegar à Alemanha com a finalidade de operá-la e salvar-lhe a vida. Viajavam em embarcação precária, destinada ao tráfico de seres humanos e operada por uma das organizações criminosas. O barco dirigia-se à ilha siciliana de Lampedusa. Em alto-mar, o traficante que comandava a embarcação lançou ao mar a mochila de Raghad. Ele sabia que ela dependia dos remédios que ali guardava. “Pela falta de insulina Raghad agonizou e morreu no curso da travessia, sem largar a mão do pai, desesperado e sem alternativas”. (Relato publicado pelo Corriere della Sera e Carta Capital, 19/08/015, Walter F. Maierovitch,“O ciclo do ódio”.)

 

 

Cenas como essa, trazem-nos à memória os livros de Cursio Malaparte “A Pele” e “Kaputt”. Os relatos apresentados então evidenciavam a ignomínia da ação humana durante e logo após a II Grande Guerra. Malaparte testemunha um mundo violento, cruel e degradante. O escritor expressa sua esperança na humanidade, apesar de tudo.

 

Ao final de julho deste ano, os noticiários internacionais chamavam a atenção para a gravidade da situação de conflito no norte da França. Os governos britânico e francês, sob crescente pressão, enfrentavam (e ainda enfrentam) a necessidade de lidar com a crise de migrantes em Calais, de onde milhares de pessoas tentaram ­(e ainda tentam) entrar no túnel sob o Canal da Mancha e chegar ao Reino Unido. Os migrantes e/ou foragidos que estão acampados em Calais tentam chegar á Grã Bretanha, via travessia do Canal.

 

Alguns arriscam se esconder em veículos com destino aos ferriescross-channel. São multidões desesperadas prontas para saltar sobre ou cortar cercas de segurança na tentativa de chegar à ilha britânica. Essas pessoas sofrem repressão policial e são vítimas de atentados por parte de grupos neofascistas franceses.

 

Setenta anos depois do final da II Guerra Mundial a Europa é novamente palco de atrocidades - crimes contra a humanidade. Antes, em guerra declarada, as forças aliadas combatiam o nazifascismo. Hoje, em guerra não declarada, vários países europeus estão em luta contra milhares de migrantes que tentam sobreviver em território da União Europeia (UE).

 

Em 1940, o exército britânico auxiliado por tropas francesas procurava salvar seus soldados cercados pelos alemães. Os britânicos tentavam voltar à sua ilha e resistiam no norte da França (Calais e Dunquerque), região de maior proximidade com a Inglaterra.

 

Nos dias de hoje, vemos os mesmos personagens – França, Inglaterra, Alemanha – agora unidos contra os migrantes, que como o exército britânico almejam sobreviver do outro lado do Canal da Mancha.

 

A situação descrita não se resume ao norte da França. Espalha-se por quase todo o continente europeu. Calais é parte de uma ampla crise de migração na Europa - em grande parte causada pelo deslocamento de pessoas de países devastados pela guerra, como a Síria, o Afeganistão, Eritréia e outros do norte de África. Trata-se de gravíssima crise mundial de migrantes e refugiados, a maior desde a II Guerra Mundial.

 

A Organização Internacional para as Migrações divulgou que mais de 430.000 migrantes e refugiados cruzaram o Mediterrâneo com destino à Europa em 2015.

 

As referências à Itália e à Grécia, principais portas de acesso à União Europeia, são frequentes na mídia. Na Itália, a ilha de Lampedusa é o mais importante local de entrada para grande número de migrantes e refugiados. As notícias sobre barcos supercarregados e de naufrágios são recorrentes nos jornais. O noticiário também fala em migrantes escravizados pela máfia. A pequena cidade de Ventimiglia, no noroeste italiano e fronteira com a França, também é palco da crise. Migrantes tentaram chegar à França por esta cidade. Paris fechou a fronteira gerando crise com a Itália. A polícia italiana reprimiu a população que acampou nas rochas do litoral.

 

A resistência ao acolhimento dos imigrantes não é só francesa e inglesa. Na Áustria, onde o controle é rígido, os clandestinos são mandados de volta à Itália. Em 23 de agosto, na fronteira da Grécia com a Macedônia, a polícia tentou deter multidão desesperada e faminta – três mil homens, mulheres e crianças enfrentaram a repressão policial. Tratava-se de sírios, paquistaneses e afegãos que passaram pela Grécia em direção aos países nórdicos.

 

A Hungria acabou de construir um muro de 175 km para impedir a chegada de migrantes via Sérvia. No dia 27 de agosto, vítimas de ação criminosa por parte de traficantes de pessoas, dezenas de refugiados foram encontrados mortos (por asfixia) em um caminhão na Áustria. O veículo continha 71 corpos.

 

Ações criminosas como essa se repetem diariamente. Manchetes divulgados pela mídia retratam a barbárie:

 

“Barcos com refugiados naufragaram na costa da Líbia - centenas morreram afogados”; “Refugiados em porões de barcos pagam para respirar”; “Corpo de criança refugiada afogada aparece em praia de resort turco”; “Bebê sírio e mais 11 migrantes morrem afogados na Turquia”. “Em vários lugares campos de refugiados foram incendiados”; “Deputada da direita francesa propôs que a marinha atirasse em barcos que transportam migrantes”; “Mulheres pedindo asilo são violentadas”; “País do leste europeu propôs abrir suas fronteiras para refugiados, mas apenas se forem cristãos”. “Marine Le Pen, líder nazifascista francesa e o italiano leghista Mateo Salvini, da Liga Norte (organização italiana de extrema-direita), encabeçam campanhas xenófobas”.  “Cameron diz que ilegais são ‘uma praga de pessoas’ que vêm de África” (1).

 

Nos últimos seis meses ocorreram duzentos ataques contra centros de acolhida de refugiados na Alemanha. Barbárie explícita!

 

Os governos europeus têm-se mostrado muito aquém do que a situação exige. Entre os principais governos envolvidos destaca-se o alemão com posição mais receptiva àqueles que tencionam ingressar no país. Angela Merkel tomou a frente na defesa do espaço Schengen (área de livre circulação da UE) e tem enfrentado grupos de neonazistas.

 

Todavia, a poderosa chanceler fala em receber refugiados e não migrantes. Merkel não sinalizou qualquer esperança para aqueles que chegam à Alemanha em busca de prosperidade econômica.

 

É o caso dos migrantes dos Bálcãs – eles chegam da Bósnia, Albânia, Kosovo, Macedônia, Montenegro e Sérvia. Não haverá complacência para com essas pessoas. Terão de retornar a seus países.

 

Se a nação mais acolhedora age de forma tão cínica, o que dizer dos demais (Grã Bretanha, França, Espanha, Itália, Áustria). Há outros ainda piores, como é o caso da Hungria.

 

Medo, arrogância, preconceito, intolerância, cinismo e hipocrisia marcam as atitudes dos países da União Europeia.

 

A crise migratória será longa, violenta, cruel e degradante. Tal como Cursio Malaparte, conseguiremos expressar esperança na humanidade?*

 

*

 

Quando finalizávamos este artigo (15/09/15) a mídia escrita destacava: “Oportunismo vs. Xenofofobia – Entre a repressão húngara e a necessidade alemã de mão de obra qualificada, como a que vem da Síria” (Carta Capital; nº 867, Nosso Mundo, pg. 40); “Crise testa livre circulação na Europa”, “Papa defende que o continente acolha os imigrantes e refugiados” (O Estado de S. Paulo, Internacional, pg. A8).


Leia também:


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Migração e evasão de cérebros


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Participam do Grupo São Paulo Guga Dorea, Elisa Helena Rocha de Carvalho, José Juliano de Carvalho Filho, Thomaz Ferreira Jensen e Silvio Mieli.

 

Publicado originalmente no Boletim da Rede.

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