Correio da Cidadania

Síria: como foi perdida a paz

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Apontar de quem é a culpa pela catástrofe da Síria é uma questão discutível. No entanto, sabe-se agora que num momento, perto do início das hostilidades, a paz era possível.

 

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, publicada em 15 de setembro, o ex-presidente da Finlândia, Martti Ahtisaari, fez uma revelação até então inédita.

 

No ano de 2012, ele estava em Nova Iorque, participando de conversações sobre a guerra da Síria com os cinco países membros natos do Conselho de Segurança da ONU.

 

Ouviu então de Vitaly Churkin, embaixador da Rússia na ONU, uma proposta de paz que incluía a retirada do presidente Assad.

 

Em linhas gerais, constava de três pontos: primeiro, o Ocidente pararia de armar os rebeldes; segundo, haveria negociações diretas entre representantes do governo e dos rebeldes; terceiro, seria encontrada uma forma elegante para a saída de Assad.

 

Esse ponto era da maior importância, pois representava a principal reivindicação dos rebeldes e seus protetores, os EUA, Arábia Saudita, Turquia, França e Reino Unido.

 

Mais tarde, Ahtisaari perguntou a Churkin se era pra valer e recebeu uma firme confirmação.

Tudo indica que a sondagem era mesmo oficial, ainda mais porque o russo acabava de chegar de Moscou, onde estivera em busca de orientações.

 

De outro lado, não há como duvidar da seriedade do ex-presidente finlandês. Trata-se de personalidade do mais alto conceito. Detentor do Prêmio Nobel da Paz, por seus 30 anos de atuação na solução de problemas Internacionais como na Namíbia, Kosovo,

Indonésia e Iraque.

 

Ahtisaari levou a proposta russa às missões dos EUA, Reino Unido e França na ONU. Não recebeu qualquer resposta.

 

Na época em que ele esteve em Nova Iorque, a ONU havia registrado 7.500 mortos na revolução síria. Hoje, chegam a 220.000, além de 11 milhões de civis expulsos de seus lares, dos quais 4 milhões sobrevivem como refugiados no exterior.

 

Talvez até o acordo proposto pela Rússia, se aceito em princípio, fracassasse. Mas não se pode negar de que havia boas chances de dar certo.

 

Nesse caso, as centenas de milhares de mortos e as milhões de pessoas desalojadas nos anos posteriores teriam sido poupadas.

 

Obama, Cameron e Hollande são sem dúvidas corresponsáveis por essa catástrofe humana.

Porque esses sábios e dignos estadistas ocidentais teriam se recusado a dar uma chance à paz?

 

Para Martti Ahtisaari: “Nada aconteceu porque todos eles (os EUA, Reino Unido e França) e muitos outros estavam convencidos de que Assad seria expulso do seu gabinete em poucas semanas, portanto, não era necessário fazer nada”.

 

Como se sabe, seus cálculos furaram. A guerra continuou, cada vez mais terrível. Centenas de milhares de mortos, dezenas de milhões de desalojados estão pagando por esse erro.

 

Mas, mesmo que as grandes potências tivessem razão, nessas “poucas semanas” haveria combates. E, é claro, muita destruição, muitos mortos e feridos.

 

Para os EUA e aliados isso não foi levado em conta. Uma paz oriunda de negociações entre rebeldes e forças pró-Assad levaria forçosamente a um governo de coalizão, talvez neutro em política externa.

 

Já com o prosseguimento do conflito militar, esperava-se a queda de Assad. Assumiriam o poder os rebeldes, francamente pró-EUA.

 

E o Irã perderia seu mais importante país árabe aliado. Pesou decisivamente a aposta na derrota de Assad e do Irã, esse o maior rival dos EUA na hegemonia sobre o Oriente Médio.

 

A verdade é que, apesar do sempre apregoado amor à paz dos governos norte-americanos, eles não têm hesitado em usar a guerra ou outros meios escusos para promover seus interesses políticos imperiais.

 

E os de sua poderosa indústria de armamentos, sempre ansiosas por novos e lucrativos conflitos bélicos.

 

É o próprio general Wesley Clark, comandante da OTAN entre 1997 e 2001, quem confirma.

Em entrevista a Amy Goodman (Democracy Now, 2/3/2007) ele mencionou um memorando do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld “que descreve como nós iríamos tomar sete países, começando com o Iraque, depois a Síria, Líbia, Somália, Sudão e, por fim, o Irã”.

 

Eram tempos de George W. Bush. Tony Blair também fala a respeito desses planos no seu livro A Journey: “ele (Dick Cheney, o vice de Bush) queria agir em todo o lote: Iraque, Síria, Irã, atacando seus prepostos – Hamas, Hizbollah etc. – no decorrer da ação”.

 

Segundo Blair, Cheney pensava que o mundo teria de ser redesenhado e que, depois do 11 de setembro, isso deveria ser feito através da força. “Portanto, ele era a favor da linha dura, dura. Sem ‘se’, nem ‘mas’, nem ‘talvez’”.

 

Seguindo seu plano de dominação, o governo Bush procurou desestabilizar o governo sírio de Assad em 2006, muito antes do início da revolução.

 

E a prova é dada pelo Wikileaks. Em telegrama secreto, o embaixador dos EUA em Damasco, Willian Roebuck, informou: “esse plano deve lançar mão de diferentes fatos para criar paranoia no interior do governo sírio; para empurrá-lo a exagerar, fazê-lo temer que haja um golpe... E mais adiante: “promover tensões entre xiitas e sunitas. Particularmente usando boatos que sabemos serem falsos”.

 

A crise com o Irã nuclear, que estava assustando o Oriente Médio com o fantasma de uma guerra, poderia já ter sido superada há cinco anos.

 

Em 2010, os governos Lula, do Brasil, e Erdogan, da Turquia, apresentaram um plano capaz de Impedir um possível programa nuclear militar iraniano, acalmando o Ocidente.

 

Sua base era uma proposta da própria Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA, órgão da ONU), de 2009, que previa o enriquecimento do urânio iraniano em outro país em níveis específicos para uso civil, nunca militar.

 

Como seguia as linhas do que fora negociado na ONU, a iniciativa turco-brasileira (já aceita pelo Irã) poderia ser adotada, pelo menos como ponto de partida para um acordo final.

 

Não era o que os EUA queriam. Para eles, o mais importante era aplicar novas sanções sobre Teerã, fazendo a maior destruição possível em sua economia. O que, acreditavam, forçaria o regime dos aiatolás a hastear a bandeira branca.

 

Seria uma derrota retumbante, que faria os sonhos hegemônicos iranianos se aproximarem de zero.

 

Não estaria fora de propósito o desenvolvimento de uma indignação popular tão forte que causasse uma revolta de dimensões nacionais.

 

Por isso mesmo, a secretária de Estado, Hillary Clinton, desconsiderou o acordo proposto pelo Brasil e a Turquia, afirmando que não passava de uma manobra de Teerã para ganhar tempo.

 

Acabou sendo mais um cálculo errado dos estrategistas do Pentágono. O Irã sofreu, mas não se rendeu.

 

Por sua vez, o povo dos EUA, em sucessivas pesquisas, declarou-se farto de guerras. E a paz passou a ser popular na sociedade norte-americana.

 

Por outro lado, o novo presidente iraniano, Rouhani, revelou-se um líder moderado e digno de confiança, contribuindo para aliviar a tensão do seu país com o Ocidente.

 

E, ao que parece, desta vez a paz venceu, pois os P+5 e o Irã chegaram a um acordo final, pondo fim na crise nuclear.

 

Quanto à Síria, depois de estar perdendo no início, Assad passou a vencer num segundo momento e agora está mal novamente.

 

Há uma nova proposta de paz russa, não mais tão vantajosa. Mas ainda é aceitável: negociações sem pré-condições, acenando em “off” com possível renúncia de Assad no final.

 

Os EUA e aliados ainda hesitam. Talvez o terrível drama dos 300 mil refugiados, em maioria sírios, tentando entrar na Europa, comova os pragmáticos corações ocidentais.

 

Ahtiasaari não conseguiu nada deles quando, em 2012, levou a proposta russa para salvar a Síria da guerra.

 

Quem sabe agora algo se consiga. Como diz o estadista finlandês: “Não vejo qualquer outra opção além de proteger essas pobres pessoas... Estaremos pagando as contas que nós próprios causamos”.

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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