Correio da Cidadania

Os povos indígenas, os fazendeiros e o governador de Mato Grosso do Sul

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Há muito os problemas que atingem os povos indígenas em Mato Grosso do Sul ganharam manchete na imprensa nacional e internacional e de lá estão longe de sair. Todos os anos índios são assassinados e nada é feito de concreto para mudar esta triste realidade que abala o nosso estado.

 

As autoridades estaduais, sobretudo vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governador, mandato após mandato, costumeiramente simplificam o problema. Para isso recorrem ao argumento único de culpar outras pessoas e instituições: Supremo Tribunal Federal, Governo Federal, Ministério da Justiça, Presidência da República etc. Lançam mão de sofismas dos mais variados, isentam-se de qualquer responsabilidade, terceirizam o problema e simplesmente lavam as mãos. Afirmam que é a União, e só ela, que deve e pode solucionar e por fim aos conflitos.

 

Neste momento, por exemplo, as autoridades estaduais querem passar distante do problema criado pelas elites regionais. Assim agem para não sofrerem qualquer desgaste em suas bases eleitorais e, ao mesmo tempo, aproximarem-se dos ricos produtores rurais em busca do financiamento privado e empresarial para futuras campanhas eleitorais e projetos de poder.

 

Trata-se, na verdade, de um problema muito antigo, cujas origens remontam, sobremaneira, ao século 19, quando se deu a formação da propriedade privada em grande parte da região atualmente compreendida pelo estado de Mato Grosso do Sul. Foi somente com o final da chamada Guerra do Paraguai (1864-1870) que o sul do antigo Mato Grosso passou a ser mais rapidamente ocupado por levas de migrantes oriundas de outras regiões, como o norte de Mato Grosso, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

 

Logo a região se tornou palco de inúmeros conflitos, especialmente quando comunidades indígenas tiveram seus territórios tradicionais invadidos por fazendeiros e militares desmobilizados do exército imperial. A documentação oficial da época, como os relatórios da Diretória dos Índios da Província de Mato Grosso, comprova esta situação histórica.

 

Com a expansão da fronteira pastoril, os povos indígenas tiveram suas terras usurpadas e não tinham muito para onde fugir e a quem recorrer. Neste contexto, foi imposto aos povos indígenas, sobretudo os Guarani, Kaiowá e Terena, uma forma perversa de exploração da força de trabalho, análoga à escravidão, baseada no conhecido sistema do barracão.

 

Transformaram os índios no principal elemento de mão-de-obra nas fazendas que se organizaram no sul de Mato Grosso, como verificado na região fronteiriça com o Paraguai e na Serra de Maracaju. Ali milhares de indígenas passaram a trabalhar na condição de vaqueiros e em outras atividades econômicas (lavoura, colheita e preparo da erva-mate, transporte fluvial etc.).

 

No começo do século 20, o militar Cândido Mariano da Silva Rondon, posteriormente conhecido como Marechal Rondon, à frente da Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, deixou registrado os ataques que os latifundiários desfechavam contra os indígenas: “... eivados da falsa noção de que o índio deve ser tratado e exterminado como uma fera contra o qual devem fazer convergir todas as suas armas de guerra, os fazendeiros ao invés de reconciliarem-se com os silvícolas trucidavam homens, mulheres e crianças e aprisionando os que não haviam logrado fugir”.

 

Ainda segundo Rondon, não contentes com os assassinatos promovidos, os fazendeiros “abriam os ventres de índias que se achavam em adiantado estado de gravidez”. Os novos estadistas do sul de Mato Grosso, com métodos nada convencionais, foram assim estabelecendo sucessivas tentativas de exploração, dominação e até extermínio contra os povos indígenas.

 

À medida que se estabeleciam na região, incorporavam os territórios indígenas ao seu patrimônio, requerendo junto às autoridades estaduais, sem muita dificuldade e por meio de sórdidos esquemas de corrupção, títulos de propriedade da terra. Muitas áreas atingiam um tamanho tal que era demarcada vagamente em função da particularidade geográfica de cada lugar.

 

À frente desses latifúndios emergiu um grupo de proprietários que se enriqueceu ao longo dos anos e, aproveitando-se da influência que tinham nos governos municipais, estadual e federal, ganhou poderes sobre pessoas e coisas, e promoveu todo tipo de violação dos direitos elementares dos povos indígenas.

 

Contudo, vivemos nesse momento mais uma situação inusitada de conflitos entre indígenas e fazendeiros, com outro indígena covardemente assassinado durante a retomada de uma área já declarada como terra indígena desde os anos 2000, chamada Ñande Ru Marangatu. Sobre o assunto, até o momento nenhuma autoridade estadual esclareceu de onde veio o tiro, embora a bandidagem seja uma tradição de longa data das oligarquias regionais, as quais somente conhecem a Lei do 44, chamada de “Justiça de Mato Grosso”.

 

Por isso, não nos causa surpresa a conduta de certas autoridades estaduais, principalmente do governador Reinaldo Azambuja, que mais uma vez se eximem de todas as responsabilidades e responsabilizam a União pela tragédia. Ao lado do seus subordinados, o governador fala em restabelecer a ordem e em fazer cumprir o Estado Democrático de Direito.

 

Ora, como alguém que esteve ao lado dos que promoveram o “Leilão da Resistência” há alguns meses, desta ação planejada e executada para arrecadar fundos para formar milícias particulares para combater os povos indígenas, pode falar em Estado Democrático de Direito? Como restabelecer a ordem e as garantias individuais quando conclama seus pares a pegarem em armas para defender propriedades cuja titulação é, no mínimo, duvidosa? E de onde vêm tantas armas de fogo utilizadas por fazendeiros e seus contratados na região de fronteira?

 

Sinceramente, não nos causa surpresa alguma essa decisão tomada pelo referido governador. Trata-se de uma postura de classe e da conhecida estratégia de defender seus iguais. Infelizmente, para nós sul-mato-grossenses, chegamos a mais uma situação peculiar: por aqui, quem não tem terras e boi é boi, isto é, não é humano. Por isso os povos indígenas são tratados como não-humanos e seguem vítimas de um genocídio que aparentemente não terá fim no curto prazo, pois não há povo indígena sem terra e não havia terra alguma aqui sem um povo indígena que a ocupasse de maneira tradicional.

 

 

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Paulo Marcos Esselin é doutor em História (História Ibero-Americana) pela PUCRS e docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

 

Jorge Eremites de Oliveira é doutor em História/Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e docente da Universidade Federal de Pelotas Rio Grande do Sul.

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