Correio da Cidadania

Socialismo não é mais bicho-papão

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O senador Bernie Sanders, pré-candidato a presidente dos EUA, não é exatamente um socialista. Está mais para socialdemocrata.

 

Jamais defendeu a socialização de qualquer setor da economia ou mesmo de qualquer empresa norte-americana. E suas chances de vencer Hillary Clinton na corrida pela candidatura democrata nas próximas eleições são mínimas, próximas de zero.

 

A grande surpresa é que, apesar de se declarar socialista, algo tradicionalmente considerado um palavrão pelo eleitor médio estadunidense, ele vai muito bem nas pesquisas das primeiras prévias do Partido Democrata.

 

Em New Hampshire, segundo a CNN, ele cresce, já atingindo 31% contra os 50% da favorita, a senhora Clinton. E seus comícios vêm atraindo grandes audiências em todo o estado.

 

Em Iowa, surpresa!, Sanders lidera com 44% dos respondentes, deixando sua adversária para traz, com 37% (pesquisa Franklin Pierce University e Boston Herald).

 

Parece que ele está redefinindo o socialismo nos EUA como alguma coisa conforme os valores norte-americanos, claramente expressos na sua Constituição.

 

De um modo geral, o que Sanders prega é uma ação ativa do governo para defender os 99% contra o controle do Estado pelas grandes corporações. Talvez mesmo transferir esse controle de Wall Street para a maioria da população. Nada mais democrático, portanto. Os 99% começam a acreditar que essa mudança é possível.

 

Dá para sentir, e não apenas pelas pesquisas de opinião: nos primeiros três meses de campanha, o candidato soi disant socialista arrecadou 15 milhões de dólares em doações, de nada menos do que 400 mil pessoas. Claro, a senhora Clinton arrecadou muito mais. A parte do 1% que a vê com bons olhos soma recursos muitas vezes superiores aos dos 99%.

 

Para as grandes corporações é mais conveniente dividir seus dólares entre o extremo conservadorismo dos principais candidatos republicanos e o liberalismo moderado de Hillary Clinton. Assim, seja qual for o resultado, certamente ficarão do lado do vencedor, que saberá retribuir a preferência.

 

Já com Sanders o futuro seria pelo menos tempestuoso. Durante a grande crise, ele propôs que os CEOs dos grupos responsáveis por ela fossem processados, enfatizando também o “nível grotesco de desigualdade nos EUA”.

 

Agora, Sanders no Senado, e seu aliado Sherman na Casa dos Representantes, anunciaram a próxima apresentação de um projeto que não deve deixar Wall Street em festa.

 

O senador deu algumas dicas do que está aprontando, ao declarar: “nenhuma instituição financeira individual deveria poder ter holdings tão vastos que sua falência poderia lançar o mundo econômico numa crise”. E concluiu: “quando uma instituição é grande demais para falir, ela é grande demais para existir”.

 

Se as perspectivas (embora remotas) do socialista na presidência causam dispepsia em certos grandes empresários, o passado de Sanders não alivia em nada suas preocupações.

 

Em 2003, ano em que a maioria absoluta da população e dos políticos, confiando nas mentiras de Bush, aplaudiu a invasão do Iraque, Bernie Sanders, então membro da Casa dos Representantes, foi um dos raros que se opôs.

 

E com sérios argumentos: não se pensava nas mortes de soldados norte-americanos e civis iraquianos na invasão e na ocupação; uma ação unilateral estaria usurpando poderes da ONU e enfraquecendo a entidade; o ataque seria desastroso para a campanha antiterrorismo global; com um déficit crescente de 6 trilhões de dólares, como poderia o país gastar fortunas numa guerra extremamente dispendiosa?; com a saída de Saddam Hussein, qual seria a postura dos EUA diante de uma guerra civil iminente?

 

Hoje, todos condenam a brutal aventura que foi a guerra do Iraque, mas na época pós-atentado das Torres Gêmeas um político contrário a ela teria de arcar com pesados danos em sua imagem pública.

 

Como nessa ocasião, Sanders continua avesso a guerras. Por isso mesmo, na questão do acordo nuclear com Irã, ele se alinha ao lado de Obama, apoiando sua aprovação.

 

Idem no estabelecimento de relações comerciais com Cuba e no fim dos embargos à ilha.

 

Igualmente favorável à política do presidente frente a Putin, Sanders condena a anexação da Criméia pela Rússia. Até aceita novas sanções. Mas as condiciona a certas restrições: “você não deve ir à guerra. Você não deve sacrificar vidas de jovens nesse país como fizemos no Iraque e no Afeganistão”.

 

O senador-candidato prefere sempre a via diplomática para resolver as questões internacionais. Daí sua posição contrária à política intervencionista. Ele propõe uma mudança racional e inteligente, baseada no multilateralismo, ficando o emprego de força somente se a segurança nacional estiver sob risco direto.

 

Seria uma mudança radical para um país que já interveio militarmente em 14 países, desde 1980.

 

Na Palestina, porém, suas posições são bastante moderadas, talvez demais. Ele defende a “solução dos dois Estados”. No entanto, admite a manutenção dos assentamentos que tiverem “argumentos geográficos legítimos”, na contramão da opinião pública mundial contrária a todos eles por serem ilegais.

 

Tudo isso de acordo com o pensamento oficial da Casa Branca. Mas, na invasão de Gaza, Sanders dissentiu frontalmente do presidente, que falava no “direito de Israel se defender”, ao condenar duramente as ações do exército de Telavive: “os ataques israelenses que mataram centenas de pessoas inocentes – inclusive muitas mulheres e crianças – bombardeando quarteirões civis, escolas da ONU, hospitais e centros de refugiados foram desproporcionais, completamente inaceitáveis”.

 

Passando da política internacional para a segurança interna, o senador foi uma das poucas vozes que combateu a espionagem dos telefones e computadores pela NSA. Considerou inaceitáveis os exageros institucionalizados na garantia da segurança nacional.

 

Bush e seus neocons haviam se aproveitado do traumatismo causado no povo pelo atentado de 11 de setembro para apresentarem leis que restringem direitos civis, sob alegação de serem necessárias para a defesa contra o terrorismo.

 

Aprovado por grandes maiorias no Senado e na Câmara dos Representantes, o chamado Patriot Act, entre outras disposições, autorizava o presidente do país a prender quem quisesse e o manter preso, sem processo, indefinidamente.

 

Quando foi discutida sua renovação, durante a gestão Obama, ele afirmou ser contrário, mas nem por isso o vetou, atendendo a conveniências políticas.

 

Já Sanders, chamou o Patriot Act de “uma vigilância ‘orweliana’ de todos os norte-americanos”. Preferia que o governo “estabelecesse uma suspeita razoável” antes de solicitar uma “ordem judicial para monitorar registros de operações relacionadas a um suspeito específico de terrorismo”.

 

A significativa porcentagem de cidadãos favoráveis a um candidato que se diz socialista é mais um sinal de que as coisas estão mudando nos EUA.

 

Há outros indícios nesse sentido. O apoio sem limites a Israel cai de ano para ano.

 

Pesquisas mostram que a maioria da população criticou as violências do exército israelense nos ataques a Gaza, se opõe ao aumento da ajuda militar a Israel e vê com desconfiança o envolvimento dos EUA em guerras contra outros países.

 

Mesmo a opinião sobre o acordo nuclear com o Irã está dividida, apesar da colossal campanha de propaganda e relações públicas desenvolvidas pelos grupos pró- Israel.

 

O povo estadunidense começa a abrir os olhos.

 

 

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Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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