Correio da Cidadania

Agravantes e atenuantes

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A investigação da Comissão de Direitos Humanos da ONU sobre a guerra de Gaza acusou tanto Israel quanto os palestinos de violações do Direito Internacional.

 

A imprensa brasileira apresentou o fato como se as duas partes tivessem sido igualmente responsabilizadas.

 

Mas quem leu os artigos publicados na imprensa internacional sabe que não foi bem assim.

 

O comportamento israelense recebeu muito mais críticas e muito mais graves do que o dos palestinos.

 

Curiosamente, um inquérito do exército de Israel concluiu pela sua total absolvição. Possíveis danos humanos seriam inevitáveis, afinal guerra é guerra.

 

Só que a Convenção de Genebra, à qual todas as nações civilizadas aderiram, estabelece regras para que os exércitos minimizem os sofrimentos impostos aos civis.

 

Israel ignorou várias dessas regras, conforme o relatório da investigação da ONU.

 

Nas três semanas da guerra, lançou seis mil ataques aéreos e cerca de 50 mil disparos de tanques. Usou inclusive, conforme experts militares consultados pelos investigadores, bombas GBU-32/MK- 82 de mil libras fornecidas pelos EUA, de efeito tão destruidor e espalhado que seu uso é considerado ataque indiscriminado, pois atinge grandes superfícies, bem além do ponto onde explodem.

 

Tudo isso desabou sobre uma área densamente povoada. O que em si já é condenável, mas houve também um agravante: esse terrível aparato bélico foi, conforme o relatório, “largamente usado contra bairros residenciais, resultando em grande número de baixas (de civis) e extensa destruição”.

 

Daí a grande proporção de civis mortos no total das vítimas de Gaza: cerca 1.500 num total de pouco mais de 2.000.

 

Os investigadores da ONU falam em violação da lei internacional quando o exército de Telavive alvejou diretamente edifícios residenciais.

 

Para dar uma ideia, pelo menos 142 famílias perderam dois ou mais de seus membros e 18 mil residências foram total ou parcialmente destruídas.

 

“Muitos dos incidentes aconteceram no anoitecer ou de madrugada, quando as famílias se reúnem para as refeições do Ramadã (dia sagrado do Islã), ou de noite, quando as pessoas estão dormindo. A hora dos ataques tornava provável que muitas pessoas, frequentemente famílias inteiras, estivessem em casa”.

 

Essa precisão representa mais um agravante no “caso” do exército de Israel. Demonstra que houve intenção de fazer o máximo possível de vítimas.

 

Já nas pequenas cidades de Rafah e Shuj'alya foi usado “maciço poder de fogo” para destruir tudo. E o relatório acrescenta: “Em Rafah cada veículo e pessoa que se movimentavam viravam alvos em potencial”.

 

Em sua defesa, as autoridades militares israelenses alegam que, antes de atacar um bairro residencial, enviavam avisos para os moradores se retirarem.

 

A comissão da ONU reconhece que isso salvou vidas. Seria uma atenuante do crime de guerra israelense.

 

O problema é que esses avisos eram feitos em geral em zonas onde as pessoas em fuga não tinham onde se abrigar; 44% da faixa de Gaza esteve muitas vezes sob ataque ou ordem de evacuação, levando os fugitivos ao desespero. Ou mesmo à morte, pois os militares israelenses tinham ordem de atacar quem fosse visto nas áreas bombardeadas.

 

Novo agravante, portanto.

 

E mais este outro: em Rafah, o exército de Defesa de Israel adotou a chamada Diretiva Anibal (Hannibal Directive), pela qual, quando um soldado está ameaçado de captura, lança-se uma barragem de tiros, matando todos que estão ao redor, mesmo o próprio soldado.

 

“Embora a força de proteção seja um objetivo legítimo, a comissão tem uma clara percepção de que (nesses casos) as forças de Defesa de Israel descumprem princípios básicos de conduta nas hostilidades”, diz o relatório.

 

Talvez o maior agravante apontado foi: “o fato de as lideranças políticas e militares não terem mudado o curso da sua ofensiva, apesar de haver consideráveis informações a respeito do grau maciço de mortes e destruições em Gaza, levanta questões sobre violações potenciais da lei humanitária internacional por essas autoridades, que podem significar crimes de guerra.

 

E completando: “podem constituir táticas militares que refletem ações das forças de defesa de Israel de uma política mais ampla, aprovada pelo menos tacitamente por aqueles que tomam decisões nos mais altos escalões do governo de Israel”.

 

Portanto, os principais culpados estão no alto. Quanto aos palestinos, eles não escaparam das críticas da ONU.

 

O relatório fala em “sérias preocupações em relação à natureza essencialmente indiscriminada da maioria dos projéteis direcionados contra Israel por esses grupos, alvejando civis israelenses, o que viola a lei humanitária internacional e pode representar crime de guerra”.

 

O Hamas – governo de Gaza – se defende, afirmando que seus mísseis seriam apontados contra alvos militares, mas que, eventualmente atingiam áreas civis, uma vez que:

 

1 - Ao contrário dos mísseis israelenses, não teriam mecanismos que garantissem precisão;

 

2 - Muitos objetivos militares israelenses estavam espalhados por seu território, em alguns casos nas vizinhanças de áreas habitadas.

 

Claro, não tem como provar suas desculpas. No entanto, o fato de apenas seis entre as 67 vítimas israelenses no conflito (menos de 10% do total), contra os 1462 civis palestinos mortos pelo exército de Telavive (cerca de 65% do total) depõe a seu favor.

 

Reforçado pela seguinte informação da comissão da ONU: “A maioria dos projéteis disparados pelos grupos armados palestinos era, no máximo, equipada com sistemas de orientação rudimentares, nenhum na vasta maioria dos casos”.

 

O que não absolve os palestinos, mas não deixa de ser uma atenuante. A outra acusação aos líderes de Gaza foi que 21 civis palestinos, considerados informantes de Israel, foram executados sem processo legal.

 

Crime de guerra, segundo a comissão. Sem dúvida.

 

O Hamas ainda argumenta que não há como comparar sua luta pela independência do país contra o ataque da potência que o ocupa ilegalmente.

 

É verdade, mas se poderia discutir que, nesta terceira guerra de Gaza, não está clara a autoria dos primeiros disparos.

 

Mesmo tendo em mãos todos estes fatos, jornais e emissoras de TV brasileiros preferem colocar as culpas israelenses e palestinas no mesmo saco.

 

Mas não dá para comparar os muitos crimes, cheios de agravantes, cometidos por Israel, contra os poucos de responsabilidade dos palestinos, em geral com atenuantes.

 

O próprio New York Times, normalmente favorável a Israel, não se exime de criticar sua ação em Gaza.

 

Ele diz em sua edição de 23 de junho: “Israel tem o dever, e deveria ter o desejo, de ajustar suas políticas militares de modo a evitar vítimas civis e responsabilizar aqueles que não as respeitarem”.

 

Entrevistada em Genebra, Mary McGowan Davis, ex-juíza do Tribunal Federal de Nova Iorque, que presidiu a comissão de investigação da ONU, enfatizou: “queremos estabelecer um forte sinalizador de que o uso generalizado de explosivos num bairro densamente povoado é lesivo e que essa política precisa mudar. Porque não é OK lançar uma bomba de uma tonelada no meio de um bairro”.

 

A Autoridade Palestina acaba de entregar ao ICC (Instituto Criminal Internacional) um dossiê contendo o relatório da comissão da ONU. Já é tempo de se começar a julgar os responsáveis pela hecatombe de Gaza.

 

 

Leia também:

O futuro dos direitos humanos será decidido na Palestina

 


Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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