Correio da Cidadania

Brasil: crise financeira ou fiscal?

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A classe dominante brasileira produziu um consenso perigoso para o país: segundo afirmam os principais jornais, TVs, rádios, deputados e senadores (dos principais partidos), professores de economia e governadores, o país vive uma grave crise fiscal. A produção ideológica deste consenso se recusa a ver a causa fundamental de todos nossos males atuais: a imensa crise financeira do Estado, produto do mega-endividamento público (interno e externo) organizado desde 1994, quando entrou em vigor o Plano Real.

 

Em junho de 1994, quando o ex-presidente Itamar Franco anunciou o Plano Real, a dívida interna não superava os 64 bilhões de reais. Fernando Henrique Cardoso venceu as eleições naquele ano e, ao término de seu segundo mandato, a dívida alcançou 720 bilhões de reais. A multiplicação da dívida não tem segredo: os economistas decidiram controlar a inflação com a brusca elevação da taxa de juros em patamares superiores aos 50%!

 

Nas duas últimas décadas, o Brasil foi quase sempre o campeão mundial de juros, alimentando inédita república rentista, onde todas as frações de capitais (multinacionais, banqueiros, latifundiários, comerciantes e fundos de pensão) alimentam-se à custa da dívida pública. O governo Lula (2003-2010) dobrou a aposta, razão pela qual a dívida chegou a 1,5 trilhão de reais. O governo petista de Dilma Rousseff não amoleceu na generosidade ao rentismo: a dívida alcançou a estratosférica cifra de 3 trilhões de reais.

 

Qual a consequência mais importante do fenômeno? O governo destina a metade do orçamento público, ou seja, quase a metade de tudo que arrecada em impostos para o pagamento dos juros da dívida que, não obstante, segue crescendo em ritmo vertiginoso. Em 2014, por exemplo, o governo destinou 45,11% de toda a arrecadação fiscal para o pagamento de juros e amortização parcial da dívida. É como se o país funcionasse no ritmo de uma economia de guerra, tal como Nicarágua nos anos 1980. No entanto, a dívida segue crescendo todos os meses, alimentando o rentismo dos detentores dos títulos da dívida pública.

 

Os números deixam claro que não sofremos uma crise fiscal, ou seja, originada pelo suposto de que o “governo arrecada muito e gasta pior”. De fato, existe superávit fiscal se excetuamos da conta o gasto financeiro do governo com os juros da dívida. A constituição de 1988 em vigor prevê a auditoria da dívida, mas a maioria parlamentar composta pelos dois principais partidos do país (o governista PT e o oposicionista PSDB) impede qualquer movimento nesta direção.

 

Assim, os partidos se digladiam em questões menores (redução da maioridade penal, sistema de cotas etc.), enquanto mantém sólida aliança nas questões econômicas de fundo. Da mesma forma, qualquer tentativa séria de reformar o sistema político termina em pequenas alterações no sistema eleitoral, que, de fato, são incapazes de outorgar representatividade ao sistema político, cada dia mais distante das maiorias populares e ainda do eleitor médio, a caricatura moderna do cidadão.

 

Há que observar o essencial: o consórcio ‘petucano’ maneja bem a situação política. A despeito das acusações mútuas sobre corrupção e pequenas desavenças no Congresso, a verdade é que, no terreno da economia e das questões centrais, tanto o PT quanto o PSDB estão basicamente de acordo. É o sistema ‘petucano’, mistura de petistas e tucanos que, para quantidade expressiva de eleitores, não possuem diferença alguma, razão pela qual o abstencionismo, o voto nulo e o branco, alcançou 37 milhões de pessoas no segundo turno de uma eleição considerada como “a mais disputada da democracia brasileira”. Trata-se de cifra considerável quando levamos em conta que a presidente reeleita levou 54 milhões e o senador Aécio Neves, candidato derrotado, chegou aos 51 milhões.

 

Neste contexto, mais importante que a existência dos programas sociais do petismo, é a continuidade desta regra de ouro da estabilidade monetária no país: o pagamento religioso dos juros do sistema de dívida. É verdade que as últimas medidas votadas no parlamento tiram direitos dos trabalhadores e, também neste caso, podemos ver como petistas e tucanos votam conjuntamente nas questões centrais. Ambos possuem o mesmo enfoque e discurso público: o país “precisa” buscar o superávit fiscal primário para honrar o custo financeiro da dívida interna e os custos adicionais da dívida externa.

 

No debate público, este assunto medular é, sempre, ocultado do grande público. A imprensa, exibindo inabalável compromisso com a liberdade de imprensa, atua como se estivesse, de fato, submetida à ordem unida que podemos ver nos desfiles militares. Em consequência, simplesmente ignoram o fenômeno como se não existisse. Ninguém escreve ou debate o mega-endividamento público do Estado, que garante lucros extraordinários para todas as frações de capitais e destina aos setores mais empobrecidos da população míseros 0,47% do PIB para o programa Bolsa Família, considerado o principal programa social do governo. Enfim, enquanto o governo gasta quase 10% do PIB com o aumento anual da dívida, não reserva sequer 0,5% para o programa social que tem sido considerado o mais importante da história do país.

 

Portanto, não podem existir dúvidas sobre o futuro imediato. As ilusões liberais segundo as quais a “questão social” estaria sendo resolvida por políticas sociais chegaram ao fim. A abissal desigualdade de renda – produto da super-exploração da força de trabalho – não pode ser resolvida sem tocar na propriedade e no poder dos ricos. O sistema ‘petucano’ vivia comodamente mantendo os pobres na situação de pobreza sem matá-los de fome.

 

As migalhas orçamentárias (0,47% do PIB) constituíam caridade católica e passavam a agradável impressão para os ricos e poderosos de que era possível enfrentar a violência e miséria de milhões de brasileiros com programas que rapidamente encontraram o apoio dos dois principais partidos do país. A crise econômica, derivada da ação corrosiva e silenciosa dos juros da dívida e da queda dos preços dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo Brasil, limitou drasticamente as possibilidades do consenso e, em consequência, o sistema ‘petucano’ concordou que o ajuste era mesmo inevitável.

 

Qual será o resultado da política econômica aplicada no país? Será possível sair da crise econômica e política? É muito pouco provável. As medidas orientadas pelo Fundo Monetário Internacional – incapazes de tirar os pequenos países periféricos da Europa da violência da crise financeira – tampouco funcionarão na periferia capitalista latino-americana. A quantidade de pobres e miseráveis já voltou a crescer e não existe qualquer programa de privatização – estradas, portos, aeroportos etc. – capaz de elevar a taxa de investimento na economia, pois a elevação contínua da taxa de juros torna sempre mais atrativo o investimento rentista ao produtivo.

 

Neste ano, há clara redução do setor industrial e o sustento de taxas de crescimento do PIB próximas ao zero somente é possível porque a agricultura – turbinada com agrotóxicos e destinada à exportação – segue crescendo. Em resumo, o país sofre grave regressão industrial e fortalece sua posição na divisão internacional do trabalho como mero exportador de produtos agrícolas e minerais. No entanto, os acadêmicos, o jornalismo dominante e os políticos e empresários exitosos seguirão afirmando seu otimismo no país enquanto o Brasil aprofunda as características essenciais de qualquer país subdesenvolvido e dependente.

 

 

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Nildo Ouriques é professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA)

 

 

Retirado de Brasil Observer – edição 28

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