Correio da Cidadania

A Escola Integral e a inclusão: equívocos e perspectivas

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A greve dos professores da rede estadual de ensino em São Paulo está ultrapassando dois meses de duração. Não é meu objetivo entrar no mérito da eficácia política ou não de mais essa paralisação, a não ser que a considero legítima, além de um direito. Por outro lado, a estratégia e a intransigência do poder público é sempre a mesma. Ganhar pelo cansaço e apostar no desgaste do movimento. Nada mais desleal.

 

A novidade dessa greve, no entanto, é a entrada em cena de uma proposta do governo estadual insistentemente badalada, tanto por diversos partidos políticos quanto pela própria mídia, como uma possível tábua de salvação para a crise na educação. Trata-se do modelo de ensino integral, no qual os professores, em tese, têm mais tempo para se dedicar exclusivamente ao seu ofício de ensinar.

 

A entrada na greve de alguns professores parece estar colocando, no mínimo, a necessidade de um debate mais apurado sobre o que a escola integral está sendo na prática e quais as perspectivas para o futuro, se é que existem.

 

Pretendo aqui lançar um debate levando em consideração que minha experiência na rede estadual de ensino não é como professor e, sim, como sociólogo e pai de dois adolescentes matriculados no segundo ano do ensino médio, em uma escola de tempo integral. E também como educador e articulista na área da inclusão social da chamada Pessoa com Deficiência, já que um de meus filhos tem a Síndrome de Down.

 

Na prática, a escola integral parece estar sendo vista única e exclusivamente em sua temporalidade, acreditando-se que basta os alunos permanecerem o dia inteiro na sala de aula, sem que a estrutura rígida e extremamente segmentária do chamado modelo tradicional da escola, oriunda do século 18, tenha sido minimamente abalada. Mais uma propaganda enganosa do governo? Tudo indica que sim.

 

Talvez, com exceção de algumas poucas escolas públicas, com potencialidades de mudança, o que estamos presenciando é a duplicidade de um ensino aprisionado a conteúdos e avaliações idênticas para todos, tendendo apenas a exacerbar a já conhecida e preocupante cultura do fracasso, ou seja, o educando que não acompanhar o ritmo frenético do conteúdo exigido igualmente para todos, só que agora em dose dupla, acaba sendo excluído, segregado e mesmo estigmatizado.

 

É a partir desse pressuposto essencialmente excludente, ainda em vigor na maioria das escolas, que temos urgentemente de debater criticamente um discurso ou mesmo prática de inclusão, que privilegia o pressuposto da adequação, objetivando-se a configuração de um modelo ideal de sociedade e, consequentemente, de uma escola que ainda se pretende consensual e universal.

 

Apenas duplicar o número de aulas, restando pouco tempo para o exercício real da democracia e da autonomia, só tende a perder pelo caminho todos os educandos que, seja por qual motivo, não conseguem acompanhar o trajeto extremamente linear imposto para todos, alimentando o exército de excluídos, muitos propensos, inclusive, a entrarem para o mundo da criminalidade.

 

Enquanto isso, o pressuposto democrático de uma sociedade realmente justa do ponto de vista da inclusão social afigura, antes de tudo, um novo posicionamento e um olhar distinto tanto das escolas como das próprias famílias e da comunidade em geral, em relação não só às denominadas pessoas com deficiência, mas a todos os seus educandos.

 

O que está sendo questionado aqui é uma inclusão que se pretende adequativa, na qual cada educando, independentemente de sua condição, tem suas especificidades praticamente ignoradas. Não necessariamente por demérito do professor, e sim porque ele é obrigado a correr contra o tempo, por conta do que podemos chamar de ditadura do livro didático.

 

Muitos educadores, ao contrário (e conheço vários deles), ainda conseguem driblar essa imposição e criar vínculos legítimos com seus educandos, não “alunos”, traduzidos aqui como pessoas “sem luz”. Não são poucos os educadores (incluindo algumas escolas não integrais) que conseguem ver a luz em seus educandos e pelo menos tentar investir nas potencialidades que, com certeza, cada um deles tem.

 

Abertura para as diferenças

Cabe ao educador, nesse contexto adverso, estar aberto a viver as diferenças, o que talvez possa se tornar uma reinvenção constante de si mesmo, levando-o a não mais imaginar que ensinar seja apenas depositar informações conteudistas ao Outro, não mais concebido como uma sociológica categoria abstrata e sem vida chamada “aluno”.

 

Como diria Paulo Freire, trata-se aqui da criação de processos de aprendizagem não mais permeados por conteúdos impostos autocraticamente, e sim considerar a realidade e história de vida de cada um dos educandos, sendo eles rotulados como pessoas com deficiência ou não. O próprio termo integral pressupõe que devem ser levados em consideração também os aspectos emocionais, afetivos e psicossociais de todos, não só cognitivos, além das singularidades inerentes a cada educando.

 

Muitas escolas, habilmente escondidas no manto obscuro de um discurso inclusivo, acabam promovendo, na melhor das hipóteses, o que pode ser denominado como inclusão seletiva.

 

Incorpora-se aí a ideia de que o ser diferente deve sempre ser visualizado como alguém abaixo das perspectivas e que, portanto, deve ser nivelado a um conteúdo programático habitualmente exigido para todos, na mesma proporção e rapidez.

 

A inclusão social, diante disso, não pode mais ser limitada apenas em colocar e manter crianças ou adolescentes com necessidades educativas especiais em classes regulares, pois, paralelo ao movimento de inclusão, é imprescindível que o profissional envolvido com essa questão desenvolva projetos pedagógicos que atendam as diferenças subjacentes a cada ser humano.

 

A heterogeneidade, portanto, deveria ser o público alvo de toda escola que se pretende integral e inclusiva. Significa dizer que o ensino tradicional, ao trabalhar em busca da homogeneidade, encontra limites para ensinar aquele educando que se afasta do modelo de aprendizagem considerado ideal. E quanto mais longe o aluno estiver desse modelo único de ensinar, maior será considerada a sua dificuldade de aprender.

 

A inclusão da pessoa com deficiência é, nesse contexto, apenas um ponto de partida para pensarmos na necessidade de uma escola que privilegie, de fato, a multiplicidade. O que é pensar, de fato, nas diferenças humanas, e não mais no “diferente”, pensado aqui na dicotomia excludente igual/diferente?

 

O que algumas escolas já nos mostraram é que, para lidar com essa questão, o sistema de ensino deveria sair do pedestal histórico no qual se colocou, rompendo definitivamente com o mito de que educar é apenas transmitir a todos conteúdos predeterminados por burocratas da educação, de forma regiamente igual.

 

No âmbito da heterogeneidade, cabe ao educador ser exatamente a ponte entre os interesses e necessidades do aluno e o seu aprendizado, fomentando no educando o desejo de produzir a sua própria dinâmica de aprendizado e de construção do conhecimento.

 

Ao contrário do que a história do mundo ocidental tentou nos mostrar, o ser diferente não pode mais ser concebido como alguém que se encontra abaixo das expectativas normalizantes, imposta por outro supostamente mais forte. Nesse sentido, cada indivíduo, em sua diferença não hierarquizada, abre-se a outras diferenças através de seus afetos, amores e paixões.

 

Já que, histórica e culturalmente, a chamada inclusão social ficou representada como a inserção do Outro, rotulado aqui como pessoa com deficiência, a esse sistema de ensino ainda hegemônico e dominante, ainda é importante demonstrar que incluir de fato é ver esse Outro, seja ele quem for, como radicalmente diferente em si, e não uma representação de mim mesmo enquanto modelo de igualdade e normalidade.

 

Mesmo entre os “iguais” ou “normais” também se prefiguram diferenciações, catalogadas ou não, que necessitam de atenção particularizada pelo educador, para não reproduzir a exclusão hierarquizante e a cultura do fracasso. Será que não estamos tão somente mudando o lugar da exclusão, em nome de um discurso inclusivo? Ou a escola integral oferece realmente oportunidades iguais para todos, e isso significa, na prática, tratar as pessoas de forma diferente, pois cada educando é único e tem tempos de aprendizado diferenciados. Ou, então, nos rendemos ao Ivan Illich, em seu livro Sociedade sem Escolas.

 

Segundo esse indispensável pensador, o “secreto currículo da escolarização” só inclui o educando na lógica da dominação, em uma sociedade em que tudo (incluindo a imaginação e a criatividade) é milimetricamente medido, quantificado e padronizado.

 

“A escola pretende fragmentar a aprendizagem em ‘matérias’, construir dentro do aluno um currículo feito desses blocos pré-fabricados. (...). O professor-distribuidor entrega o produto acabado ao aluno-consumidor, cujas reações são cuidadosamente analisadas e tabuladas (Illich, 1985, pgs 53 & 54)”.

 

Illich não separa os seres humanos em pessoas com e sem deficiência já que, para ele, o crescimento de um ser humano não pode ser mensurável por um currículo e muito menos comparado ao crescimento de outro ser. O que a escola que está aí almeja, revela-nos  ainda esse instigante pensador, é ensinar “aos alunos-consumidores que adaptem seus desejos aos valores à venda” pelo mercado e o sistema vigente.

 

Incluir, portanto, não é padronizar comportamentos e tempos de aprendizado. É conceber cada pessoa como um ser único e conectado a outros seres, também únicos e singulares.

 

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Guga Dorea é jornalista e sociólogo, além de articulista e educador nas áreas da educação e inclusão.

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