Correio da Cidadania

‘Os poderes jurídicos brasileiros não dão relevância à vida do negro’

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É certo que teremos um ano socialmente difícil, como anunciam os ajustes fiscais que inauguraram o governo, a inflação, o medo do desemprego e a latente insatisfação de várias categorias de trabalhadores. No entanto, às vezes parecemos esquecer que, num país tão violento como o Brasil, tais fatores têm consequências muito mais profundas e desumanas. Mata-se tanto que corremos o risco de perder o chão da realidade das negações de direitos.

 

Chacinas como a do Cabula, em Salvador, com 14 mortes e 5 desaparecidos, e da Mangueirosa, em Belém, cujo número de mortos segue incerto, são, talvez, a verdadeira síntese do processo político brasileiro. Ainda mais quando se volta a ventilar, através de Congresso reconhecidamente reacionário e corrupto, a redução da maioridade penal. É disso que tratamos ao falar com Hamilton Borges, membro da Campanha Reaja ou Será Morto(a).

 

“Dentro dos impactos que teremos, e já estamos tendo, vamos ver a privatização do sistema prisional e a construção de mais cadeias. Com mais desempregados nas ruas, teremos mais gente na mira da polícia em cima de simples suspeitas, o que vai aquecer a indústria da violência e da segurança. Mais dinheiro pra indústria da segurança, mais cercas elétricas, mais dinheiro pra viaturas, gasolina e nenhuma motivação para a criação de empregos. Portanto, o cenário é muito triste”, disse.

 

Na conversa, Hamilton falou a respeito da brutalidade da política de segurança pública baiana e seu extremado racismo, intocado mesmo sob as gestões petistas. Aliás, o governador chamou a ação policial de “gol de placa”. No entanto, o grupo Reaja conseguiu espaços de inserção internacional, a ponto de constranger o Estado brasileiro em fóruns como a OEA. Mesmo assim, Hamilton prevê tempos difíceis, especialmente para quem se sente sob apartheid.

 

“A perspectiva de respeito aos direitos humanos da população é extremamente baixa. Infelizmente, todas as políticas gestadas pelo Partido dos Trabalhadores, que se diz um partido democrático-popular, em relação à segurança pública, são no sentido de legitimar o Estado de Direito Penal e criar dispositivos de controle em comunidades negras e pobres, estabelecendo a ideia de que somos os inimigos internos”, analisou.

 

A entrevista completa, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: O que você pode nos contar sobre a ação policial no Cabulo, Vila Moisés, em Salvador, que terminou em 14 mortes e 5 feridos, no dia 6 de fevereiro?

 

Hamilton Borges: Foi mais uma ação de uma polícia extremamente violenta. A Rondesp (Rondas Especiais da Bahia), responsável pela ação, tem o mesmo caráter da ROTA (SP) e do BOPE (RJ). Entrou numa comunidade muito pobre, na qual o Estado jamais esteve presente e, de uma vez só, promoveu uma execução sem precedentes na história da segurança pública. Além das 14 mortes, tem uma grande quantidade de pessoas desaparecidas, pelo menos 5 nunca voltaram ao seio familiar. Imediatamente, fizemos uma pressão pra dar visibilidade nacional e internacional ao caso.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da postura e declarações do governador baiano, Rui Costa (PT), em defesa da ação dos militares?

Hamilton Borges: É importante ressaltar esse ponto, pois, imediatamente após a notícia da execução, ele aplaudiu a ação dos seus policiais, falou da coragem deles, comparando-os a um jogador de futebol que está de frente para o gol. “Eles poderiam ou não fazer o gol, poderiam ou não ser aplaudidos. E foi um gol de placa”. Dessa forma, ele aplaudia. É revoltante porque o governo, assim, estabelece um Estado de Direito Penal e dá licença pra matar a seus policiais.

 

Correio da Cidadania: Além disso, seu antecessor, Jacques Wagner, virou ministro da Defesa. Dentro desse contexto, o que a postura do governador representa, em termos de expectativas políticas de segurança pública para os próximos quatro anos na Bahia?

 

Hamilton Borges: A perspectiva de respeito aos direitos humanos da população é extremamente baixa. Infelizmente, todas as políticas gestadas pelo Partido dos Trabalhadores, que se diz um partido democrático-popular, em relação à segurança pública, são no sentido de legitimar o Estado de Direito Penal e criar dispositivos de controle em comunidades negras e pobres, estabelecendo a ideia de que somos os inimigos internos.

 

Não é diferente do Rio de Janeiro, por exemplo, onde as tropas do governo federal, também exercido por este partido, ocupam comunidades e favelas. É um recado muito claro para nós, no sentido de nos afirmar como inimigos internos.

 

Correio da Cidadania: Como tem sido essa repercussão internacional?

 

Hamilton Borges: Sobre a internacionalização da luta, há um bom tempo temos uma relação muito estreita com a Justiça Global e a Anistia Internacional. Ambas possibilitaram nossa ida aos EUA. Num primeiro momento, com a Justiça Global, tivemos a oportunidade de falar na Comissão de Direitos Humanos da OEA. Naquele momento, o Estado brasileiro não teve argumento e foi obrigado a admitir que existe problema racial no meio de sua política de segurança pública.

 

Depois de testemunharmos o constrangimento do governo em admitir tal situação, tendo sua orelha puxada pelos comissários da OEA, nos dirigimos a Nova Iorque, no encontro da Anistia, onde também tivemos a oportunidade de falar do caso. Agora, temos uma agenda na Europa e passaremos por Portugal e Espanha.

 

Infelizmente, os poderes jurídicos brasileiros não dão importância ou relevância à vida do negro. Assim, já no ano passado fizemos a segunda marcha internacional contra o genocídio do povo negro e voltaremos a alguns países pra mobilizar mais gente a olhar o Brasil.

 

Tivemos contato com os jovens de Ferguson (cidade dos Estados Unidos, no estado do Missouri), que lutam por justiça no caso da morte do Michael Brown (negro assassinado por policiais brancos, posteriormente absolvidos pela justiça), e eles ficaram estarrecidos com o que souberam, pois viram que morremos igual barata por aqui.

 

Correio da Cidadania: O que você pode nos contar a respeito do atual quadro da violência policial na Bahia? Como é a relação cotidiana das polícias com a população?

 

Hamilton Borges: Nós, que moramos em comunidades pobres de Salvador e metrópole, testemunhamos a criação de territórios de morte, fundados nessa lógica de segurança pública, que é penal, militarizada, com dispositivos discriminatórios como a “cartilha da tatuagem”. Se a pessoa tem a pele preta e determinada tatuagem, pode ser presa ou abatida. Outro dispositivo é o “baralho do crime”, inspirado no George Bush, cheio de fotos de pessoas negras. Qualquer negro que for parecido a alguém que conste no baralho pode ser abatido também.

 

É importante falarmos isso porque o Nordeste, sobretudo a Bahia, ainda tem a imagem de ser um território de festa, alegria. Mas aqui temos um apartheid, uma divisão bem clara da sociedade. É como se tivéssemos naquele filme Selma, que conta a história de Martin Luther King, é como se estivéssemos num apartheid do século passado, na África do Sul. Temos de sair de casa com documentos na mão, como se fossem “passes”, não podemos ficar em nossas comunidades, as mulheres e homens mais velhos são agredidos, chamados de coisas como “desgraças” e “protetores de bandido”.

 

É uma situação extrema, na qual algumas organizações de direitos humanos foram cooptadas por grandes editais e coisas do tipo, e outras, por medo da polícia, não têm falado. Assim, criamos a Reaja ou Será Morto/Morta, como ação de autodefesa dos próprios negros, da própria comunidade, pra reagir a essa situação.

 

Obviamente, nossa vida está em risco, mas não vamos parar.

 

Correio da Cidadania: Geralmente, repercutimos muito mais as dificuldades cotidianas de metrópoles como Rio e São Paulo e deixamos outras importantes capitais de lado. Sobre Salvador, o que você nos diria do atual quadro social? Um ano que promete ser de recessão econômica e maior desemprego trará reflexos imediatos, dentro do que aqui debatemos? Já estaria trazendo?

 

Hamilton Borges: Dentro dos impactos que teremos, e já estamos tendo, vamos ver a privatização do sistema prisional e a construção de mais cadeias. Com mais desempregados nas ruas, teremos mais gente na mira da polícia em cima de simples suspeitas, o que vai aquecer a indústria da violência e da segurança.

 

Mais dinheiro pra indústria da segurança, mais cercas elétricas, mais dinheiro pra viaturas, gasolina e nenhuma motivação para a criação de empregos. Portanto, o cenário é muito triste. E só vai mudar com muita luta e organização política.

 

O caráter de organização que defendemos é autônomo, a partir das necessidades da comunidade, no apoio e solidariedade às pessoas que estão no meio dessa vulnerabilidade. Vemos um cenário muito ruim, mas também entendemos que nossa luta vai inspirar as comunidades a construírem alternativas de solidariedade, poder e defesa.

 

Correio da Cidadania: Sendo assim, o que você pode nos contar do movimento Reaja? Como tem pautado sua atuação e quais estratégias pretende aplicar para os próximos debates políticos?

Hamilton Borges: A Reaja ou Será Morto/Morta é uma organização centrada no poder das mulheres nas comunidades. Porque são elas que historicamente, desde a escravidão, nos cuidaram e criaram, são nossas mães. Os homens, invariavelmente, são presos e mortos e, assim, as mulheres que seguram a onda. Existe um conselho de mulheres que dá a linha no movimento e todos construímos espaços de solidariedade, sobretudo com as vítimas.

 

Quando alguém perde um ente querido há um impacto na família e procuramos juntar recursos para ampará-la; buscamos incidência nos poderes jurídicos, dentro e fora do Brasil; temos como método de solidariedade a ação cultural comunitária, pois nos espaços que eles constroem territórios de morte nós construímos territórios de cultura, através de bibliotecas, atividades de formação política, cinema etc. Acreditamos na espontaneidade do povo, mas não exatamente no espontaneísmo; acreditamos que as ações historicamente construídas dentro da comunidade devem ser fortalecidas.

 

Não acreditamos em relações com governos, no sentido de entrar neles, disputar editais e agendas partidárias. Acreditamos numa agenda coletiva, baseada no poder do povo, das pessoas mesmo. Esse é o nosso método, que em 2005, na Secretaria de Segurança Pública, foi criticado, pois segundo seus representantes era algo démodé, uma coisa dos anos 70. Mas temos demonstrado ser um método fundamental para a nossa vida, pois ela está em jogo e não podemos barganhá-la em eleições e editais.

 

Acreditamos e vamos seguindo desse jeito, conseguindo mais repercussão, até fora do país, mas sem nenhum brilho ou glamour, achando que somos heróis. Estamos fazendo apenas a nossa autoproteção. É pela vida de nós mesmos que estamos lutando.

 

Áudio da entrevista


Leia também:

Novembro de 2014 em Belém, maio de 2006 em São Paulo

Maré: “O padrão de violência que a polícia imprimia se repete na atuação do exército”

 


Gabriel Brito e Paulo Silva Jr são jornalistas.

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