Correio da Cidadania

O PT e seu eterno retorno

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Os primeiros meses do governo Dilma 2.0 seguem criando grande comoção, algumas preocupações genuínas e uma enorme quantidade de obras-primas para o anedotário político nacional. Como se sabe, não apenas o inferno são os outros, como diria Sartre, mas o analfabetismo político, como diria Brecht, também. A ignorância alheia é sempre um antídoto suficientemente eficaz para jogar responsabilidades, análises equivocadas e atitudes questionáveis para debaixo do tapete. Regimes políticos foram criados baseados nesta premissa – muitos autores já desvendaram o elitismo por trás do próprio sistema representativo. Nos piores momentos, justificou regimes autocráticos, ditaduras e genocídios.

 

No Brasil atual, o inferno e o analfabetismo político definitivamente são os outros. A mídia, a burguesia golpista, a classe média, a academia, meus vizinhos despolitizados, quando não fascistas mesmo. Eduardo Cunha, Renan, os privatistas, FHC e por aí vai. A autocrítica nunca foi um forte da esquerda brasileira. Alguns foram até fundados no negacionismo e o sustentam até hoje, do estalinismo ao aquecimento global.

 

PT, um passo pra frente e dois pra trás

 

Invertendo a velha máxima marxista, o PT deu um passo para a frente ao vencer a eleição de 2014 com um “programa” – a rigor, não havia programa de governo, mas um apanhado de marquetagem – e deu dois para trás ao assumir o ajuste fiscal proposto pelo adversário. Não foi muito diferente do que passou o próprio FHC em 1999, o que motivou – pasmem! – um artigo de Tarso Genro propondo seu impeachment. O Fora FHC é até hoje considerado um dos momentos de brilho intenso das “bandeiras históricas” do PT, apesar de passar longe do republicanismo que Genro hoje defende.

 

Assim, o partido incorpora o eufemismo do “terceiro turno” e assume de vez que cidadão serve para votar a cada dois anos, e no meio tempo reclamação é tentativa de golpe. Ou, parafraseando blogueiros neoconvertidos, para quem serve o alarmismo? Aí vale tudo, até defender empreiteiros pegos na mão grande. Talvez sejam eles novos heróis do Brasil, como disse certa vez Lula sobre nossos límpidos usineiros? Nestes momentos, soa coerente que Luiz Carlos Bresser-Pereira seja ungido ao revelar que a elite tem ódio ao PT. Ele, que nunca fez uma autocrítica sobre as privatizações que comandou sob FHC, cabe perfeitamente ao momento petista.

 

Quando é difícil governar e a economia mundial não ajuda é que se veem os estadistas. Menos aqui, onde a esquerda é feita de Thiagos Silvas que não sabem que a política, assim como o futebol, é jogo ríspido, mesmo que com regras. Quando o esbarrão é forte grita-se, inocentemente: falta! Golpe? Mas o desafio à lógica é sempre um movimento arriscado. Às vezes o analfabeto político resolve começar a pensar com os argumentos que tem à disposição. Como a esquerda hoje não tem nenhum, alguns falam em fazer a “batalha da comunicação”, mas só se esquecem de dizer pelo que se deve batalhar. Lava-jato, ajuste fiscal e esquemas com Baruscos e Paulinhos não foram criações da mídia, até onde se sabe.

 

Não que a mídia ou uma parte relevante da classe média-alta brasileira não tenham suas predileções, preconceitos e udenismos e, a partir deles, métodos questionáveis que, em última instância, são constitutivos do nosso capitalismo periférico. Doze anos depois de chegar ao poder, a esquerda brasileira, no entanto, recorre ao mesmo expediente, confundindo manifestações que, gostemos ou não, são legítimas em uma democracia – o que não nos impede de renegá-las ou considerá-las grosseiras –, com golpismo, o que tem, como essência, a vitimização do partido no poder e, evidentemente, de seus burocratas.

 

PT, Planalto e uma desastrosa articulação política

 

Como se diz no jargão popular, há males que vêm para o bem. No caso do PT, há males que vieram para o mal mesmo. O afastamento compulsório da antiga burocracia partidária, resultado do julgamento do mensalão, poderia ter produzido uma renovação partidária, uma profunda mirada autocrítica e a busca por soluções arejadas e democráticas, em sintonia com as aspirações políticas de um novo momento, de novos interlocutores. Mas o único resultado desse processo foi a acomodação partidária de várias correntes e a ascensão de quadros de segundo escalão talhados nas mesmas práticas e sem a metade da capacidade de análise de conjuntura e gestão de crises.

 

É o que vemos hoje nas manifestações dos atuais dirigentes do partido e na desastrosa articulação política do Planalto. O resultado do vácuo político só poderia ser a retomada do messianismo neopetista em torno de Lula. Curiosamente, é o pragmatismo do ex-presidente que pode resolver a crise política instalada em Brasília – o ex-presidente acreditava, por exemplo, que compor com Eduardo Cunha na eleição para a presidência da Câmara era a única solução viável, no que não foi atendido pelo comissariado dilmista. Agora, ele defende que se volte a dar espaço ao PMDB, justamente o que a esquerda que sabe divagar, mas não sabe governar, não quer. Contra a realidade, a aventura chinagliana.

 

Mas o fato é que Lula, apesar de ter se tornado nos últimos anos uma pálida lembrança do ex-líder sindical que em 1979 convenceu uma massa radicalizada de operários do ABC paulista a terminar uma greve sem ganhos reais e ainda saiu ovacionado do palco, é o que melhor se pode esperar no momento - mesmo que suas diatribes em eventos públicos com baixa adesão e pautas questionáveis ajudam a contaminar o ambiente político e a alastrar o difuso sentimento antipetista, que toma rapidamente as classes, de cima a baixo. A sensação de que navegamos sem bússola é geral.

 

“Nós contra eles”?  É a vez da classe média, média-baixa, nova classe média e a classe trabalhadora

 

Ato contínuo, não há nada em que o petismo atual se apegue mais do que o dirigismo e, portanto, seus líderes curtidos no novo/velho sindicalismo. Assim chegamos ao “nós contra eles”. O problema é: quem somos “nós”? Uma parte significativa da classe média já foi petista, assim como São Paulo é o berço do partido e já elegeu três prefeitos da legenda e uma infinidade pelas grandes cidades do estado. Em breve, estaremos dizendo que a classe média-baixa e a antiga classe trabalhadora também foram. A “nova classe média” é a bola da vez, vendo os ganhos materiais que tiveram nos governos Lula estagnando e virando belas faturas de cartão de crédito em sentido contrário ao poder de compra dos salários. Vaccari somos todos?

 

Junte-se a isso as restrições ao Fies e ao Prouni, o corte no orçamento do Pronatec e o ataque ao seguro-desemprego que afetará sobretudo os mais jovens, parcela mais atingida pela rotatividade. O programa de financiamento estudantil, que cresceu 400% nos anos Dilma, agora esfriou e faculdades privadas “fiesdependentes” já cancelam matrículas, adiam o início das aulas e cobram de quem permanece. O lulismo vai sendo encoberto pelo deserto de ideias e pela queima rápida e gradual do capital político acumulado de 2003 a 2008.

 

Hoje, “somos os pobres”, a massa pauperizada que melhorou de vida e que, dizem, atrapalha as filas nos aeroportos e nos shoppings. Este lugar-comum já foi mais utilizado, quando o dólar ainda não chegava a R$ 2,50 e “todo mundo” viajava de avião. Mas o Datafolha nos diz que 36% das pessoas com renda de até 2 salários mínimos e 46% das pessoas com renda entre 2 e 5 salários mínimos rejeitam a presidente. Quem está certo?

 

Analistas importantes como Lincoln Secco afirmam que o PT ainda não entendeu o antipetismo, pois, apesar de o modelo lulista não pretender acirrar a luta de classes, esta se faria necessariamente como resultado das políticas sociais dos governos em questão. É uma afirmação contraditória. Se é verdade que a luta de classes foi acirrada pelos governos petistas, então a análise atual de que é a burguesia quem orquestra protestos como o panelaço do domingo (8/3) estaria correta e, como diz Lula, há que se “bater de volta”. Mas ninguém se arrisca a dizer que a massa precarizada hoje se comoveria pelo PT.

 

Junho de 2013 e a inaptidão para se redefinir

 

O problema de algumas análises, mesmo as mais consistentes e sensatas, é que veem a raiz dos atuais problemas do PT como resultado de um mérito, a política para os pobres. Assim, questões de ordem política e organizacional, intrínsecas à conformação que o partido adotou durante seus mais de trinta anos e ao modelo de governabilidade que hoje se mostra esgotado, perdem relevância para, no fim, serem justificadas pelo “ódio” das classes abastadas. Servem para diminuir a responsabilidade de atores políticos que nem sempre tiveram bons modos.

 

Assim, chegamos a Junho de 2013, ou melhor, o que guardamos dele. Para “criar pontes” com a juventude, esta abstração supostamente revolucionária e esquecida lá nos anos 1990, os partidos tentam correr atrás do tempo perdido. O que define a relação de PT e assemelhados com entidades como o Coletivo Fora do Eixo não é apenas a sua incapacidade de dialogar com a juventude, exposta dramaticamente em Junho, mas sua pouca disposição para tentar e descobrir que certas mudanças dependem de algumas cabeças rolarem. Muito mais fácil é terceirizar a tarefa para um coletivo autoproclamado porta-voz de jovens cada vez mais atomizados e cada vez menos representáveis.

 

Vendo a água subir pelo ralo, nada como se apegar a algum messias pós-moderno que indique o caminho das pedras, enquanto as mesmas cabeças de sempre se ocupam dos afazeres burocráticos mais comezinhos e da manutenção dessa mesma conformação para que, enfim, tudo fique exatamente como está. Assim, as propostas de reforma política postas na mesa se preocupam muito com o fortalecimento dos partidos, mas sem as contrapartidas – financiamento público que garanta sua existência sem que o esforço para conquistar o apoio da sociedade seja valorizado ( aqui há uma boa proposta para isso).

 

O modelo lembra o famigerado imposto sindical, serve para o conforto de todos. À premissa correta de impedir que o poder econômico decida eleições e ainda cobre juros altos dos seus patrocinados, sugere-se um jeito de não pedir dinheiro para empresas e, na verdade, não pedir dinheiro para ninguém, como se fazia nas velhas cotizações de militantes. O Estado garante, e os partidos podem generalizar o melhor dos mundos, as assembleias legislativas.

 

Em São Paulo, com uma bancada de deputados estaduais que serve para quase nada e que faz oposição ao governador Geraldo Alckmin com ainda menos vitalidade que seus correlatos federais tucanos, o neopetismo se dá ao luxo de xingar muito o Movimento Passe Livre (MPL) no facebook ,sem conseguir organizar um mísero protesto decente no Palácio dos Bandeirantes. Água do volume-morto nos olhos dos outros é refresco.

 

Uma crise narcísica

 

Christian Dunker, analisando Birdman, ou a Inesperada Virtude da Ignorância (2014), comenta que o filme aborda um tipo de tragédia “que se dissemina e se aprofunda nas relações quando estas estão expostas a expectativas de reconhecimento totalmente fora da potência de auto-realização dos envolvidos”.  Diz o psicanalista que “ela não tem a ver com os valores envolvidos, girem eles em torno da família, do trabalho ou do amor, mas com a superestimação da crença e do modo como se realizam”.

 

Completa-se então o círculo da inaptidão e se revela a crise narcísica petista: o partido se torna um enorme birdman buscando virtudes irreais no presente sob a sombra de um passado fantasmático. O eterno retorno nitzcheano há doze anos assombrando os incautos. Com a garantia da legislação que os protege da dor da busca cotidiana por legitimidade, os partidos olham para o lado se contentando em ser tão ruins quanto todos os outros, pois tudo vale a pena quando o governo não é pequeno. A legitimidade do mandato de Dilma dentro do sistema representativo não se questiona, o que não se confunde com a legitimidade de partidos em divórcio com a sociedade.

 

Com um punho cerrado, fazemos da História peças de uma caricatura conspiracionista para consumo próprio. Cabe perguntar agora quem e quantos serão os próximos a empunhar as panelas.

 

 

Henrique Costa é mestrando em ciência política na USP.

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