Correio da Cidadania

O Brasil precisa de um processo de paz

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O Brasil está hoje entre os países mais violentos do mundo. Assim como outros países em desenvolvimento sem um conflito aberto e declarado, como a Venezuela, El Salvador, Honduras, Jamaica e África do Sul, possui índices de violência e um número anual de homicídios em alguns casos equivalente ou maior do que países em situações de conflito oficialmente reconhecidos.

 

O relatório anual mais recente da Anistia Internacional destacou a crise de segurança pública no Brasil, que tem mais retrocessos que avanços e se agrava a cada ano, sem uma atuação à altura do poder público, que não parece sequer considerar este tema como prioridade, que afeta o cotidiano e a vida de todos e, de maneira desproporcional, aos mais pobres e moradores das periferias do país, que são vítimas de um verdadeiro extermínio praticado pelas forças policiais, além da violência criminal da qual também são em muitos casos as maiores vítimas. O tema sequer foi tratado nos debates da última campanha presidencial, a despeito da mobilização popular crescente contra a violência policial e o descaso com o qual as autoridades tratam um dos principais problemas que vivemos atualmente.

 

Apesar dessa realidade extrema e da crescente mobilização popular, o assunto continua sendo ignorado pelas diversas esferas do poder, que manda o exército e toda força bruta possível para lidar com a exigência do mais básico direito: o direito à vida, o direito de não ser morto estupidamente e ainda com ampla aceitação social e pouquíssimas possibilidades de justiça dependendo da cor da pele, da classe social e do endereço.

 

A repressão bestial promovida contra os moradores da Maré numa manifestação contra a violência, a total privação de direitos e a militarização à qual são submetidos diariamente foi a mais recente e bárbara demonstração de como o governo brasileiro pretende tratar esta questão. Até mesmo a temida Polícia Militar teve que buscar se proteger da truculência da ação das forças armadas. Como bem sabido no Brasil, na favela não há balas de borracha, e o exército fez uso ostensivo de armas de calibre pesado contra os manifestantes.

 

Polarização e manipulação

 

O tema da violência e da segurança pública é tratado na sociedade sob uma extrema polarização - embora seja assunto corriqueiro e da maior preocupação para a maioria dos brasileiros, raramente existe diálogo de fato e minimamente informado, razoável e baseado nas concepções mais básicas de civilização. Como com qualquer questão, para que seja possível tratar o problema e buscar caminhos para a garantia dos direitos humanos e a promoção da paz e da segurança para todos, o primeiro passo é reconhecer exatamente em qual situação estamos. Reconhecer que vivemos num conflito de grandes proporções e complexidade, silenciado e manipulado pelos meios de comunicação e pelo poder público, não à toa, mas servindo aos interesses da elite política e econômica do país.

 

A manutenção da desastrosa e internacionalmente falida guerra contra as drogas, cuja desigualdade com a qual os infratores são tratados dependendo de sua classe social e poder chega ao extremo ridículo, a conexão de grupos criminosos como o PCC e milícias cariocas com políticos, a corrupção flagrante da polícia e do judiciário, entre outros fatores, imbricam o Estado nessa situação de conflito e manipulação da opinião pública.

 

Essa manipulação, atualmente triunfante, faz com que a opinião pública veja nos mais pobres e moradores das periferias o maior inimigo a ser combatido a qualquer custo, que aceite essa lógica de guerra promovida pelo Estado brasileiro, em que as periferias e favelas são tratadas como um território inimigo, onde matar indiscriminadamente é algo aceitável para o combate a um suposto inimigo. Promove-se uma cegueira para o fato de que o desastroso Estado penal atual faz apenas aumentar a violência a cada dia.

 

É preciso reconhecer essa realidade, que vivemos um conflito social sangrento, reconhecer que a violência com a qual convivemos no Brasil não é fruto do acaso ou algo inevitável ou inerente a nossa cultura, mas mantido com a ampla participação e envolvimento do Estado brasileiro, que é incapaz de buscar e construir soluções reais e sustentáveis para a crise que vivemos. Para que esse reconhecimento seja possível, é preciso que o tema seja colocado no centro do debate público no Brasil; e também é preciso reconhecimento internacional dessa realidade.

 

Falsa imagem internacional

 

No âmbito das Nações Unidas, essa situação catastrófica foi tratada especialmente através do Mecanismo de Revisão Periódica do Conselho de Direitos Humanos, onde se recomendou a essencial desmilitarização das forças policiais do país. A repressão aos protestos de junho de 2013 também foi condenada pelo alto comissariado de direitos humanos da organização. Mas, no geral e em termos diplomáticos, o Brasil é tratado como uma democracia em ascensão, algo que definitivamente não combina com nossa realidade.

 

Apesar de a imagem dourada do Brasil no âmbito internacional estar desmoronando, com a ampla divulgação de situações como a ocupação militar das favelas cariocas, com tortura e assassinato de moradores, e a repressão aos protestos durante a Copa do Mundo, ainda temos um crédito e uma imagem que não merecemos, e isso traz consequências para além da nossa realidade, já que o Brasil é um importante contribuinte às tropas de paz da ONU. E com isso exportamos o modus operandi de constantes e sistemáticas violações aos direitos humanos por parte de quem deveria proteger, como demonstrado por recorrentes denúncias contra as tropas brasileiras no Haiti.

 

Precisamos reconhecer a situação em que estamos e agir

 

Precisamos reconhecer que existe uma normalização da violência no Brasil, que a violência é um meio usado de forma recorrente e corriqueira nas nossas relações sociais. Que, além da violência mortal praticada pelo Estado brasileiro diariamente, a violência criminal tomou grandes proporções e tem, em muitos casos, fortes conexões com o poder público, e que há amplos setores sociais que defendem mais violência e um permanente estado de exceção para combater a violência - uma ideia que já deveria estar enterrada, mas infelizmente parece ganhar força no país, como demonstrado pelo crescimento da chamada bancada da bala no Congresso Nacional e nas bancadas legislativas estaduais. Há grupos que  defendem o direito do porte de armas pela população para 'autodefesa', algo preocupante levando em conta a composição de forças nos legislativos.

 

Nesse contexto, as políticas e esforços para o combate à violência do Estado, à violência criminal e à corrupção política, policial e judicial envolvendo a violência precisam estar num contexto maior, num verdadeiro processo de paz que possa unir a sociedade brasileira na busca pela paz e pela justiça, que possa ser capaz de alterar a atual correlação de forças e fazer frente às ideologias reacionárias contra o Estado de Direito e defensoras de mais violência que se espalham pelo país. É preciso criar novos modelos e concepções em relação à construção da paz que sejam capazes de fazer frente à situação de violência em países sem conflitos abertamente reconhecidos. O Brasil poderia ser pioneiro nesse sentido - se pretende ocupar uma posição de líder internacionalmente, essa seria uma tarefa fundamental.

 

Precisamos para isso de toda mobilização social possível e, por que não, de apoio e cooperação internacional. O nível de descaso com a violência e com o desrespeito sistemático aos direitos humanos, principalmente no que diz respeito aos mais pobres e moradores das periferias, e o despreparo do poder público e das forças policiais para lidar com a violência tornam este apoio externo algo talvez imprescindível para que possamos fazer frente a essa situação.

 

Assumir a situação em que estamos e promover um movimento de ação coordenada pode ser nossa única saída se queremos evitar cenários ainda piores, com uma compreensão de que estamos de fato mergulhados num estado de exceção.

 

Medidas próprias de resolução de conflitos serão necessárias, como a concessão de anistias a infratores rasos, tanto do Estado quanto de grupos criminais, com sistemas de delação premiada, regimes de acompanhamento e, principalmente, foco na reparação às vítimas. Afinal, de fato estamos falando de um enorme contingente de pessoas envolvidas com a violência - e o encarceramento em massa é apenas mais um dos desastres com os quais convivemos no Brasil e em outros lugares do mundo, que apenas pioram o cenário de violência e violação sistemática de direitos fundamentais. Falamos também de um enorme número de vítimas, de famílias dilaceradas pela perda de entes queridos, de pessoas prejudicadas e traumatizadas pela violência, com a necessidade de um processo massivo de reparação e cuidado psicológico apropriado.

 

Apenas um movimento amplo e coordenado também poderia fazer frente ao crescimento de ideologias reacionárias e promotoras da violência, com um processo de conscientização e educação massivo que possa promover uma cultura de paz e de respeito aos direitos humanos.

 

E se existe uma vontade de impedir cenários ainda piores no futuro, é preciso agir rapidamente, concentrar esforços e estabelecer metas de curto, médio e longo prazo.

 

Certamente temos outras questões tão urgentes quanto a violência institucional e a crise de segurança pública, como o colapso do sistema de abastecimento de água em São Paulo e outras regiões do sudeste, a crise energética, a degradação ambiental e outros sérios problemas de direitos humanos - muitos dos quais têm estreita relação com a violência praticada pelo próprio Estado brasileiro, como a ofensiva contra os povos indígenas, uma das faces mais brutais do descaso do atual modelo de desenvolvimento irracional com os direitos mais básicos.

 

Um processo de paz, com ações concertadas e sistemáticas, poderia englobar esta e outras questões relacionadas à violência no campo.

 

Além disso, os problemas que enfrentamos tendem a se inter-relacionar e apontam para um cenário futuro sombrio para o Brasil. A truculência e violência policial poderão ser usados como arma e meio de controle da população diante da escassez de água. Se a falta de água em São Paulo e em outras cidades do sudeste já nos faz imaginar cenários catastróficos, relacionar essa situação com a violência e estado de exceção permanente no qual já vivemos piora ainda mais estes cenários. Virar o rosto e ignorar a realidade, como boa parte das pessoas parece fazer, apenas irá piorar ainda mais as possibilidades para o nosso futuro.

 

Como afirmam as abordagens mais atuais para a construção da paz, paz e justiça caminham juntas, justiça aqui entendida na concepção mais profunda e abrangente possível, incluindo justiça social, ambiental, econômica e cultural. Sem um processo de justiça após o período de exceção representado pela ditadura civil-militar, não conseguimos atingir uma verdadeira paz - o Brasil é um grande exemplo dessa concepção: sem justiça não há paz.

 

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade precisa cumprir seu papel social, o papel pelo qual ele foi realizado, com a entrega de justiça e promoção das mudanças e reformas necessárias para a superação de vez desse passado e presente sombrios. É preciso completar o processo de democratização, com a superação dos elementos não democráticos do Estado brasileiro, que podem corroer de vez os avanços alcançados nos últimos anos. É preciso construir a democracia de fato, além de fachadas e disfarces, e completar um processo de transição inacabado e que está se deteriorando a cada dia.

 

 

Mariana Parra é doutoranda em Direitos Humanos pela Universidad de Deusto, Bilbao.

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