Correio da Cidadania

Torcida e criminalização do povo

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Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Bertolt Brecht.

 

Não posso me reivindicar um especialista sobre o tema, mas a minha vontade de palpitar em questões sobre futebol, sem ter de me preocupar com a história, as táticas ou estatísticas, e tampouco em conhecer os jogadores dos times (inclusive do meu – o Corinthians) – me faz retornar a escrever apenas como alguém que gosta deste esporte, do bom futebol, claro!

 

Digo do “bom futebol” pois há coisa que nem com toda passividade do mundo é possível achar bonito ou não ter nenhuma autocrítica, como foi o caso do 7x1 que a seleção brasileira sofreu da Alemanha na Copa de 2014.

 

Sei que o desastre daquele 8 de julho, no estádio do Mineirão, marcou em definitivo a história do futebol brasileiro, assim como os 2x1 sofridos do Uruguai na Copa de 1950, no Maracanã, que, até hoje, mesmo sem muitos de nós o termos vivido, lembramos dolorosamente. Imaginem o sofrimento que as futuras gerações, que nem saberão quem eram os jogadores da atualidade, ou mesmo o que acontecia no Brasil e o quanto custou a Copa de 2014, sofrerão ao lembrar dessa histórica goleada.

 

Tamanha goleada não aconteceu naqueles 90 minutos. A derrota do Brasil já vinha e vem acontecendo há muito tempo: desde os calendários mal organizados, a evasão de recursos de vendas de jogadores, as eternas dívidas previdenciárias dos clubes, o processo crescente de mercantilização do futebol e o estímulo à violência por parte dos clubes e das “autoridades”.

 

É necessário afirmarmos que não é possível naturalizar a violência nos campos e jogar sobre a torcida a responsabilidade de algo que teve início exatamente com a ação dos times, ocorrido desde 1950, quando depois da inauguração do Maracanã foi dado o direito ao campeão do ano anterior – Vasco – de escolher o lado da sua torcida. Isso passou a ser quase uma regra, ainda que sem o rigor de hoje, havendo, na época, espaços comuns para os amigos e amigas de times rivais que desejassem assistir a um jogo juntos.

 

Quero acreditar que essa ação era uma tática dos clubes, uma tática de pressão contra o time adversário, pois no primeiro tempo a sua torcida o incentivava na busca do gol e no segundo tempo pressionava o adversário atrás do gol. Ou mudava de lado para continuar vendo os ataques do seu time, dado que não havia toda a setorização dos estádios de hoje.

 

Essa ação “ingênua”, ao longo do tempo, desencadeou um processo de rivalidade, com o qual os clubes e as “autoridades” pouco se importaram, nem ao menos reviram sua decisão equivocada de separar as torcidas, impedindo que pessoas queridas frequentassem juntas os estádios. Esta separação gerou uma escalada de violência e ódio. E na década de 90 a separação total entre torcidas aconteceu, expulsando ainda mais torcedores dos estádios.

 

Agora, diante da mais recente escalada da violência em torno do futebol, novamente segue-se o caminho mais “fácil”: criminalizar a torcida. Uma ação política, cujo objetivo concreto é afastar os pobres dos estádios, assunto do qual tratarei em outro artigo. Este caminho “fácil”, aparentemente, resolverá os problemas da violência, mas é uma tentativa clara de dizer que é um momento diferenciado, apartado da sociedade naquele momento em que 22 homens perseguem a redonda para consagrá-la entre as redes.

 

O Estado e clubes se negam, fecham os olhos para o fato de o Brasil matar 57 mil pessoas por ano (Mapa da Violência 2013), em sua maioria jovens, provavelmente muitos torcedores. Isso nos coloca na condição de matar mais do que 12 países em guerra no mundo. Logo, circunscrever a violência que ocorre no país aos estádios é negar a tragédia que acontece diariamente nos bairros do Brasil, em que o Estado só encontra resposta à violência com mais violência. E demonstra sua ineficiência, pois, ano a ano, o quadro só piora.

 

É fácil atribuir a culpa de tudo àqueles que têm no futebol uma das suas únicas possibilidades de espaço e lazer frente a uma sociedade que massacra e oprime diariamente, desde o momento que acordamos, ao pegarmos o ônibus, até as longas e precarizadas jornadas de trabalho.

 

Não se faz uma profunda reflexão sobre o processo sócio-histórico e nem mesmo buscam-se soluções que alterem a cultura da violência construída, propondo ações que levem a outro tipo de sociabilidade nos estádios. Evidentemente, essa disputa pela ampliação da criminalização cumprirá o papel que atende aos interesses de um pequeno grupo, que quer ver afastados dos estádios-shoppings aqueles que sempre foram jogados à margem da sociedade, em sua maioria negros, indígenas e deserdados de toda sorte.

 

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Givanildo M. da Silva, o Giva, é membro do Tribunal Popular, Comitê pela Desmilitarização da Policia e da Política, Terra Livre e Amparar.

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