Correio da Cidadania

Não existem alternativas às hidrelétricas no Brasil

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Crítico em relação às anomalias a que foi conduzido o setor elétrico no Brasil, mas mantendo-se dentro de uma larga, responsável e acurada análise técnica, amplamente acessível aos leigos, o engenheiro, consultor no campo da energia e ex-assessor da presidência da Eletrobrás na gestão de Luiz Pinguelli, Roberto D’Araújo, ofereceu-nos, na primeira parte da entrevista que concedeu ao Correio, um retrato cristalino da atual conjuntura elétrica do país.

 

A persistência da ótica do mercado na condução do setor, com privilégio para os grandes consumidores, persistiu em nosso país com o governo Lula, enfatizou D’Araújo.

 

Nessa segunda parte de sua entrevista ao Correio, D’Araújo discorre sobre as opções de energia que considera as mais viáveis ao nosso país e sobre os impactos das hidrelétricas. Comenta também as críticas dos ambientalistas à construção de hidreléticas, pondera sobre um novo modo de conduzir essa construção de modo a afetar menos gente e avalia o risco de outro apagão.

 

Confira abaixo.

 

CC: Se o modelo do setor elétrico vem, conforme você acredita, reforçando uma estrutura pernóstica, o que pensar quanto à melhor opção de energia hoje para o país? Você endossa a opinião de ambientalistas contra a construção de grandes hidrelétricas, a exemplo do rio Madeira e de Belo Monte no Pará?

 

RD: Quando vejo críticas quanto à construção de usinas como as do Rio Madeira, o que me vem primeiro à mente é a pergunta: Quais são as alternativas?

 

Qualquer hidrelétrica que se queira construir requer estudos com pelo menos seis anos de antecedência. E, no entanto, na década de 90, descontinuaram-se os estudos de inventários em nosso país. O setor público não fez mais inventários, e os que foram feitos pelo setor privado foram incompletos, sem considerar a amplitude do interesse público. Eles não consideram todas as variáveis ambientais, energéticas etc. A Eletrobrás era a responsável executiva para fazer inventários coerentes entre si, considerando toda a bacia hidrográfica. Com a falta de estudos hoje, a “fila” das usinas, que deveria andar, parou. Simplesmente não há mais usinas pra leiloar em “estoque”.

 

Não se pode dizer que o Brasil não tem mais hidrelétricas. Há muitas, só não estão estudadas. Ocorre que o processo de planejamento que, no passado, somente a Eletrobras fazia, ainda não foi totalmente absorvido pela EPE, a Empresa de Planejamento Energético.

 

Eu reconheço que, no passado, o modo como foram construídas as hidrelétricas no Brasil feriu os interesses de muita gente. A mídia interpretava as áreas alagadas como uma megalomania dos projetos, o que não é verdadeiro, já que os rios brasileiros são rios de planalto. Quando se represa um rio desse tipo, a tendência é formar um grande reservatório; trata-se, portanto, de uma característica da geografia brasileira.

 

Essa característica, obviamente, implicou em que se removesse muita gente de sua terra. Mas o que é crucial para ter um sistema capaz de reverter os danos aos atingidos é a avaliação de que - visto sob o ponto de vista de mercado - uma usina hidrelétrica é só uma fábrica de kWh e isso não é suficiente. Muitas das variáveis que deveriam ser pensadas como essenciais, tais como o transporte fluvial integrado a estradas, irrigação, eclusas, sobrevivência de peixes, criação de um pólo de desenvolvimento, sob o ponto de vista mercantil, viram apenas custo.

 

Se nós tivéssemos uma visão mais pública sobre as hidrelétricas, seria muito mais fácil. Construir uma hidrelétrica implica em uma enorme movimentação de máquinas e mão-de-obra. Imaginem o que poderíamos realizar aproveitando a oportunidade da sua construção para outras intervenções? Um planejamento onde os atingidos fossem compensados ou não fossem tão prejudicados. É uma outra ótica.

 

Para se ter um exemplo de benefícios esquecidos das usinas, em Mato Grosso, perto de Cuiabá, há a usina de Manso, uma usina cara, que começou a ser construída pela Eletronorte, mas acabou nas mãos de Furnas; hoje, já está operando. Antes de essa usina ser construída, ocorriam enchentes em Cuiabá que eram um transtorno e até matavam pessoas. Depois de sua construção, acabaram-se as enchentes. O problema é que esse benefício não é valorado. Se ninguém paga por essas benesses, elas se tornam custos dessas usinas nos leilões, já que o sistema mercantil aloca tudo à produção de kWh’s.

 

Em meio a essa discussão, é preciso ainda ressaltar que provavelmente não vamos mais conseguir construir hidroelétricas com reservatório. As usinas que vamos construir de agora em diante serão mais restritas, a fio d’água. Será necessário que se planejem muito mais compensações às pessoas atingidas do que as que foram feitas anteriormente.

 

CC: Mas, independente dessas importantes variáveis de ajuste, os ambientalistas defendem, quase de forma apriorística, que não há mais como a natureza resistir às intervenções de grande porte, com ou sem ajustes. O que você responderia a eles?

 

RD: Discordo dos ambientalistas, pois ao rejeitar as hidrelétricas, dizem também que o Brasil não precisa de tanta energia. Desse modo extrapolam sua área, pois a questão da necessidade de energia embutida no planejamento elétrico não é determinada só pela questão ambiental. Essa é uma discussão que se dá em outro fórum.

 

Além disso, pergunto: se não se construírem hidroelétricas, o que deverá ser construído no lugar? Qualquer forma de produção de energia polui. A resposta dos ambientalistas nesse ponto parte, muitas vezes, de uma visão romântica, a exemplo das propostas de troca de geradores, construção de eólicas, geração solar e geração a partir da biomassa. A escala dessas energias é outra!

 

Além disso, como é que se contrata de uma usina eólica? E quando parar de ventar? Quando uma eólica não gera, quem gera no lugar é a hidrelétrica ou uma térmica.

 

Se não se constrói uma hidrelétrica, a opção, na base da matriz, ainda é termoelétrica. Todas essas outras opções “romantizadas” pelos ambientalistas ainda são caras, além de não constituírem gerações de base, que se possam garantir, pois não são contínuas. Vão necessariamente estar na dependência das hidrelétricas ou das termelétricas. Não proponho o abandono. Só estou colocando-as no seu devido lugar, como complementares.

 

É comum ouvir dos representantes do Greenpeace que nós estamos na pré-história, uma vez que nos limitamos a essa dualidade que eles chamam de “hidrotérmica”. Qual é o país no mundo que não tem essa dualidade? A Alemanha possui muitas eólicas, mas também possui muitas térmicas, que são as que cobrem as “ausências” de vento.

 

CC: Mas fiquemos, então, na opção hidrelétrica. A possibilidade de incrementar a remotorização no sistema não levaria, por si só, a se evitarem novas e/ou grandes obras?

 

RD: A troca de geradores melhora a eficiência do sistema, mas ainda em uma pequena escala. Melhora-se a performance da usina no momento de atendimento da ponta, quando há exigência de geração máxima. Mas a eficiência de um gerador elétrico já é, por característica, muito alta, girando em torno de 90%. Com a recuperação, chega-se a 92,5%, no máximo 95%. Incorre-se, assim, no equívoco de super-avaliar a resultante de energia adicional com a remotorização do sistema, menosprezando o fato de que se depende também da quantidade de água, e não somente da máquina. Isso não quer dizer que se descarte essa opção nem outras melhoras de eficiência. Só é preciso reconhecer sua menor escala.

 

É possível uma comparação da economia nesse caso com o horário de verão, que é uma maneira de evitar a coincidência de carga na hora da ponta. Pode-se fazer uma analogia com a diversificação de horários nas viagens de automóveis na volta do trabalho para casa. Não se economiza muito com a não coincidência, pois somente se escalona a volta das pessoas do trabalho: alguns voltam às 7 horas, outros, às 6, e outros, às 5. Melhoram-se os engarrafamentos, evidentemente, mas todo mundo volta pra casa. A quantidade gasta de gasolina será, ao final, praticamente a mesma.

 

Nesse ponto, inclusive, é preciso ressaltar um dado que é extremamente esquecido no Brasil. O consumo residencial é baixíssimo, comparável a países africanos. A média de consumo é de 140 kWh por mês. Essa média inclui todas as residências ricas do país. Se a média é de 140, há uma faixa de baixo consumo que gira em torno de 40 kWh por mês. Inúmeras residências ainda não têm geladeira, e, caso tivessem esse conforto, teríamos um enorme aumento no consumo de energia.

 

CC: No rastro dessa discussão sobre opções de energia, mesmo sabendo não se tratar de sua especialidade, não posso deixar de mencionar os biocombustíveis, envoltos em enorme polêmica nos últimos meses.

 

RD: Realmente, não é minha área. Acompanho, no entanto, as discussões relativas aos deslocamentos de alimentos que podem ser ocasionados pelo álcool, o que acredito ser verdadeiro, e tenho também preocupações com relação ao precário padrão de emprego na indústria alcooleira.

 

CC: E quanto ao risco de apagão? Como você o enxerga nas atuais circunstâncias do país?

 

RD: Estamos em uma situação muito privilegiada. Nos últimos anos, a natureza nos favoreceu bastante, e, além disso, desde 2002, conforme já ressaltei, estamos com uma carga de consumo muito abaixo do que se esperava. Entre essas duas situações favoráveis, muita água e pouco consumo, o primeiro prêmio de “afastamento de perigo” é do o consumidor; ele é o responsável maior.

 

As reservas estão altas, mas, obviamente, elas não nos dão uma garantia absoluta. Podemos retardar o racionamento por mais 3 ou 4 anos, uma vez que já está se mostrando que, em 2009 ou 2010, o risco fica alto.

 

Em função desse prognóstico, o que espero que a gente tenha entendido é que o racionamento brasileiro nunca vem como surpresa. Em qualquer país do mundo com base térmica, por exemplo, a Inglaterra, a Califórnia, ele pode vir como surpresa. Mas, no Brasil, não. No racionamento de 2001, o Custo Marginal de Operação Médio, que é o “termômetro” do sistema, começou a subir muito antes.

 

O cenário que está se vislumbrando agora não decorre somente da ausência de chuvas. O Operador Nacional de Sistema já está lançando seu olhar mais à frente, prognosticando que, daqui a 3 ou 4 anos, pode não haver usinas em quantidade suficiente para atender à demanda. Com isso, tem assumido uma atitude mais conservadora com a água, economizando-a em maior proporção.

 

Entendo, no entanto, que afirmar que vai ou não haver racionamento é sempre uma aposta arriscada e, ainda por cima, um enfoque equivocado de encarar o problema. Pode-se, por exemplo, avaliar que vai haver racionamento e, daí, chove bastante, e ele não acontece; de maneira inversa, pode-se dizer que não vai haver racionamento, mas, daí, não vem a chuva, e ele acaba ocorrendo. A questão principal não são essas conjecturas circunstanciais, mas sim a avaliação de se estamos ou não com um sistema estrutural que garante o que vende. Quando o custo marginal de operação médio, que não depende da hidrologia, sobe, é sinal de perigo.

 

Pagamos uma tarifa que embute não somente o valor da energia que consumimos, mas também a sua garantia, pois queremos energia sempre. A garantia está incluída no preço. Quando o Custo Marginal começa a crescer é sinal de que a garantia está se deteriorando. Esse é o momento para se começar uma discussão, e não na véspera do racionamento.

 

Ocorre que a situação se complica na medida em que esses são dados desconhecidos da mídia, que, nesses momentos, nunca explicita a verdadeira correlação entre as variáveis. Quando se diz, por exemplo, que o preço do mercado spot de energia elétrica está subindo, ninguém imagina que o Operador Nacional de Energia está preocupado e que a garantia pode estar se deteriorando.

 

 

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