Correio da Cidadania

Hilda Furacão: o enigma

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Morreu em Buenos Aires, no último 29 de dezembro, a brasileira Hilda Maia Valentim, 83. Segundo reportagens, ela teria inspirado o romance “Hilda Furacão”, de Roberto Drummond, lançado em 1991.

 

Glória Perez, aos transformar o livro em minissérie para a TV, em 1998, me convidou para almoçar. Queria saber quem, de fato, era Hilda Furacão, pois o autor declarara que somente ele e eu tínhamos noção do paradeiro da moça de classe alta que se tornou prostituta na zona de baixo meretrício de Belo Horizonte.

 

Até Glória Perez, uma profissional da ficção, se convencera de que a fantasia era realidade! E muitos ainda acreditam que o frei Malthus da história sou eu, embora nunca se tenha encontrado o menor indício para comprová-lo, exceto o fato de os dois, personagem e eu, serem frades dominicanos.

 

Não é incomum figuras fictícias serem consideradas históricas. Guilherme Tell é tido por muitos, na Suíça, como personagem histórico, e há até estátuas em sua homenagem. Como há na Espanha uma infinidade de monumentos em homenagem a Dom Quixote, que só existiu de fato na imaginação de Cervantes.

 

Roberto Drummond e eu trocávamos confidências sobre nossos projetos literários. Foi em torno de um chope, em Belo Horizonte, que criamos a personagem Hilda Furacão. A moça de classe alta que se torna prostituta e seduz um frade.

 

Talentoso, Drummond enriqueceu o livro com ingredientes da receita de best-seller: quase todo o entorno da narrativa é real (o golpe militar, o clube, a zona boêmia...), exceto o miolo: a saga de Hilda Furacão.

 

Sob o sucesso da minissérie, meu telefone não parava de tocar. Repórteres ansiavam saber onde vivia Hilda Furacão e quem ficara com os sapatos dela... (haja Cinderela!). Uma emissora de TV quase cedeu à chantagem de um espertalhão que, em troca de uma bolada de dólares, prometeu apontá-la na porta do hotel em que ela residia em Miami...

 

Em maio de 2014, a brasileira Marisa Barcellos recebeu, no asilo em que trabalha em Buenos Aires, sua conterrânea Hilda Maria Valentim. Supôs tratar-se da mulher que inspirou a personagem e entrou em contato com Ivan Drummond, jornalista e parente do escritor.

 

Ivan confirmou haver encontrado a musa: Hilda Valentim nascera em Belo Horizonte! Porém, ao contrário da Furacão, não pertencera à elite mineira nem fora prostituta. Casou com Paulo Valentim, que jogou futebol pelo Boca Juniors na década de 1960. O marido faleceu em 1984. Hilda permaneceu na Argentina, e teria ganhado o apelido de Furacão por ser brigona...

 

Pode ser que Roberto Drummond, que também escrevia sobre futebol, tivesse noção da história de Hilda e Paulo Valentim. Mas prossigo convencido de que há apenas pequenas coincidências entre as duas Hilda.

 

A história da Valentim também se presta à criação ficcional. E guardo a certeza de que a personagem de Roberto Drummond e sua saga nasceram em uma mesa de bar na Savassi, em Belo Horizonte.

 

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

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