Correio da Cidadania

Com Levy, volta a hegemonia do setor financeiro

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Em seu discurso de posse no Ministério da Fazenda, Joaquim Levy tentou se apresentar como grande novidade moralizadora, capaz de “redimir” o recente passado crescimentista e supostamente gastador do governo que ele agora avaliza. Fez-se de antítese salvadora, no que foi incensado pelos conglomerados de comunicação.

 

Era de se esperar que fosse assim. Há menos de dois meses, Levy dirigia o Bradesco e, hierarquicamente, era inferior apenas a Luiz Carlos Trabuco Cappi, presidente do banco e o primeiro a ser lembrado por Dilma para ocupar a pasta mais importante do ministério. É impossível que ocupe o cargo público sem uma missão privada. E, pelo histórico dele próprio e dos que o acompanham, em sua maior parte oriundos da escola neoliberal de pensamento da Universidade de Chicago, a missão é devolver ao setor financeiro a hegemonia na articulação com o Estado.

 

O Brasil retorna assim a Malan e Pallocci, tenores do mantra do equilíbrio fiscal, da meta de inflação, da independência do Banco Central, do câmbio flutuante e do superávit primário como tautológico caminho único para o eterno pagamento de dívidas questionáveis sob qualquer ponto de vista. Uma opção que coloca novamente o atendimento do sistema financeiro privado como absoluta prioridade governamental, em detrimento da obrigação constitucional de garantir direitos.

 

Essa hegemonia do setor financeiro foi perdida ao fim dos dois mandatos de FHC. O PT, para chegar ao poder formal, articulou-se preponderantemente com o setor industrial, embora também tivesse mantido altíssimas taxas de juros básicas, e com ele firmou um compromisso de governança pétreo. Um acerto de aço, garantido, por exemplo, pelos desembolsos gigantescos e crescentes do BNDES a um círculo pequeno de grupos econômicos escolhidos como campeões nacionais.

 

Esse compromisso se inicia com os financiamentos a empreendimentos econômicos nitidamente superavaliados, no território brasileiro, voltados à produção de excessos para exportação, e se estende a operações destes grupos em outros países, aí já como instrumento da projeção de poder internacional do próprio Brasil. Tudo em ampla e profunda articulação com o Itamaraty.

 

Não é à toa que, nos trechos do discurso em que coloca o ajuste fiscal como motor daquilo que ele chama de novo ciclo de crescimento, ao modo Malan , Levy indicou subliminarmente enxergar o setor industrial, beneficiado por gigantescos e crescentes subsídios originados de várias fontes do poder público, como um mero sugador de benesses.

 

Claro que os setores financeiro e industrial não são estanques e nem antagônicos. Eles se interpenetram através de participações acionárias cruzadas, fusões, aquisições, participação de representantes de uns nos conselhos de administração de outros, no compartilhamento de interesses estratégicos em associações de classe que produzem argumentos posteriormente apresentados como de interesse público, e assim por diante.

 

Mas a escolha estratégica pelo ajuste financeiro é o que define o caráter rentista da administração Levy&Dilma. O que se reflete até na geopolítica global brasileira, a começar pelo empenho brasileiro na consolidação dos BRICS e do processo criação do banco de investimentos do bloco, a que Mantega se dedicava pessoalmente.

 

Não é de estranhar, portanto, as rusgas, públicas, entre a presidenta e Mantega, que presidiu o BNDES entre novembro de 2004 e março de 2006 e desposou as teses crescimentistas enquanto ministro. As rusgas culminaram com a ausência do ex-ministro na posse de seu sucessor.

 

Levy, sendo representante formal do governo nas articulações com os grandes agentes econômicos, coloca, como nunca, a dúvida: teria chegado ao fim o período petista iniciado em 2003? Em sendo afirmativa a resposta, quem sucederá o PT?

 

A estratégia petista de poder se apoia sobre dois vértices.

 

Para os de baixo, ampla distribuição de bolsas compensatórias que efetivamente ajudam os pobres, mas não mudam sua condição e pesam quase nada no orçamento federal. A estes, Levy sinaliza com cortes em pelo menos cinco fundamentais direitos previdenciários, a começar pelo seguro-desemprego. Seu contraparte no Planejamento, o ministro Barbosa, chegou a convocar entrevista coletiva para sustentar mudanças no salário mínimo, e depois voltou atrás.

 

Como se comportarão estas bases em caso de findarem os benefícios sociais? Continuarão sendo a sustentação eleitoral do PT que, a cada eleição, votam no partido por medo de perder o pouco que conseguiram?

 

Para os de cima, fartas liberações de recursos públicos a projetos voltados à produção de excessos para exportação e altíssimas taxas de juros para demais rentistas. No futuro próximo, Levy lhes garante cortes no orçamento social para aumentar o superávit primário de 1,2% para 2% e pagar a ilegítima dívida pública.

 

Onde aportarão os grandes grupos industriais que, abonados pela política governamental de subsídios de vários tipos, apoiam petistas e aliados com polpudas doações nas campanhas eleitorais e apoio político durante os mandatos?

 

O ministro contracionista também avisou que o expansivo BNDES terá o seu papel revisto, ressuscitando o temor de que sejam finalmente implementadas as propostas históricas dos tucanos e a Febraban, que defendem a privatização da propriedade da instituição e/ou o fim do monopólio deste banco público no acesso aos bilhões do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para fins de investimento.

 

Seria este um indicativo de qual fração capitalista se prepara de forma mais competente para assumir o poder formal em alguma próxima eleição?

 

Para legitimar a nova velha opção que representa, Levy surfou na onda da moralizadora Lava Jato e criticou a falta de “transparência” no trato da coisa pública. Refinou sua justificativa mencionando o jurista Raymundo Faoro, morto em 2003, que em sua volumosa obra Os donos do poder apontou o viés patrimonialista da colonização portuguesa como origem dos males do Brasil.

 

Ao criticar os campeões nacionais do campo industrial, Levy deu a entender que o setor financeiro privado seria um vestal alheio ao patrimonialismo que elE agora critica. Mas, convenientemente, esqueceu-se dos casos Delfim, Coroa Brastel, Econômico e Pactual, para ficar só em alguns, do Proer e das taxas de juros indecentes que o Banco Central pratica em benefício dos rentistas.

 

Entretanto, a industriais e banqueiros presentes à sua posse (incluindo Trabuco e Olavo Setúbal, dono do Itaú Unibanco, que tem sido derrotado em disputas com o Bradesco desde pelo menos 2011, quando Levy era Secretário de Fazenda do estado do Rio), o novo ministro omitiu a outra parte, também central, da tese de Faoro – e nesta omissão se encontra indicativo importante do segredo de polichinelo sobre a sucessão capitalista.

 

Faoro concluía sua tese sobre o patrimonialismo observando que uma fração do capital não necessariamente desaparece quando uma nova chega. Elas coexistem em equilíbrio dinâmico na organização do Estado.

 

Ainda nos falta descobrir com que grupos exatamente, no interior do Estado, a fração novamente hegemônica vai se articular. A posse e as primeiras posições de Levy nos dão apenas pistas iniciais.

Carlos Tautz é jornalista

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