Correio da Cidadania

II Guerra do Golfo: terceirização desvestida

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Desde os seus primeiros passos em solo iraquiano - com o objetivo de retirar do poder o Partido Baath, encarnado na ditadura de Saddam Hussein -, os Estados Unidos, em vista da autoconfiança exagerada, acreditaram ser dispensável um processo de transição político-administrativo, de forma que dispensariam, por exemplo, os efetivos militares locais ou governariam eles mesmos o país, por meio de dois cônsules civis até 28 de junho de 2004 - Jay Garner e Paul Bremer.

 

Formalmente, o Iraque tornou-se uma democracia, mas, no dia-a-dia, os Estados Unidos tutelam-no administrativamente, haja vista o número de efetivos militares para lá deslocados e sem data fixa de retirada. No entanto, há outro aspecto da ocupação que ensombra a presença dos combatentes estadunidenses: os contratados (contractors), um eufemismo para a designação dos novos mercenários, em geral reservistas norte-americanos com experiência no território afegão ou iraquiano.

 

Destaque-se que, na véspera da passagem oficial de poder, Bremer assinou o Decreto-Lei nº17, de 27 de junho de 2004, por intermédio do qual os contratados não se restringem apenas às firmas de segurança e a seus empregados - de acordo com a seção primeira do documento, a abrangência é de fato bem mais ampla. O objetivo do texto foi o de assegurar estabilidade jurídica e, destarte, política para as companhias, majoritariamente norte-americanas, lá alojadas.

 

Atualmente, os neomercenários atuam fora da jurisdição do Estado iraquiano, por causa da seção sexta do mencionado decreto, reportando-se cotidianamente a servidores do Departamento de Estado por intermédio de três grandes companhias, das quais se destaca mais negativamente a maior delas, a Blackwater USA, dirigida por um ex-combatente de elite da Marinha. Ao mesmo tempo, eles não se submetem ao código militar dos Estados Unidos, de maneira que adquiriram em sua atuação um grau desproporcional de desenvoltura, o que lhes proporciona na prática impunidade, mesmo diante de ações deploráveis como a morte de 17 civis iraquianos no dia 16 de setembro último. Contudo, a terceirização não se adstringe ao Iraque, nem às tarefas de segurança. Há pouco tempo, no Afeganistão, a firma encarregada de treinar a nova força policial, a Dyncorp, chegou a receber mais de um bilhão de dólares para o encargo. De acordo com Paul Krugman, em sua coluna ao New York Times (11/12/2006), os auditores não haviam encontrado sequer cópia do contrato, nem haviam constatado que o programa de treinamento fora efetivado ou estava em curso.

 

Após a invasão em março de 2003, mais de uma centena e meia de empresas norte-americanas foram literalmente galardoadas com contratos cuja soma total ultrapassa 50 bilhões de dólares. Não se valorizou a expertise de companhias locais, muitas das quais plenamente capacitadas para a execução de várias das tarefas acordadas. Além do mais, a expectativa de contratação de trabalhadores iraquianos frustrou-se, dada a preferência por norte-americanos. Diante da crise econômica, a repulsa à presença de tropas estrangeiras por parte da população mais carente amplia-se e materializa-se, muitas vezes, por sabotagem ou por formas violentas.  De todas elas, a mais presente é a Halliburton, com contratos totalizados em torno de 12 bilhões de dólares. Treze outras obtiveram somas acima de um bilhão e meio de dólares. Sua área de atuação abarca basicamente a infra-estrutura, com atenção para a recuperação da malha elétrica.

 

A gestão Bush tem se comportado de maneira desenvolta em relação ao mister de terceirizar. É paradoxal que o Estado mais significativo do globo não tenha ele mesmo condições ou capacidade de executar determinadas tarefas, mesmo em países periféricos desassistidos. É possível constatar que a reconstrução parcialmente privatizada do Estado afegão e do iraquiano é uma das causas maiores da insatisfação local - em muitos casos, a supervisão da execução dos contratos é insuficiente. Embora o insucesso seja evidente, não há a perspectiva de alteração do norte perfilado até o momento. Uma das explicações possíveis para a manutenção de tal postura é o vínculo político entre o Partido Republicano e tais tipos de empresas. Mesmo fora do poder, as conexões podem manter-se, por meio da presença de antigos servidores públicos, com experiência advinda de cargos de alto escalão, em postos executivos ou de consultoria.

 

 

Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.

 

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